É coisa de preto
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É coisa de preto

17 de novembro de 2017
É coisa de preto

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Imagine você estar em seu país, em sua casa, com sua família e seu grupo social e, de repente, ser sequestrado e levado à força em um navio, em condições degradantes, para outro país. Se não morresse durante a viagem, por doença, maus-tratos ou fome, seria vendido como mercadoria, para ser submetido a trabalhos forçados, e não ser reconhecido como ser humano. O seu proprietário poderia, inclusive, vendê-lo ou dispor da sua vida e de sua família, já que seus filhos se equiparavam a filhotes de um animal, pertenciam ao seu dono. As mulheres serviam de escravas sexuais para os seus “senhores” e filhos.

Como você reagiria a situação acima descrita? Acharia justa uma reparação por essa tragédia humana, ainda que tardia, aos descendentes dos que sofreram tais atrocidades?

A escravidão, página mais cruel da história do Brasil, aconteceu desta forma. Negros eram capturados na África e vendidos como mercadorias, para aqui perderem a condição de pessoa, trabalharem até a exaustão, sem direito a nada. Só ao sofrimento.

O Brasil foi o último país da América a abolir formalmente a escravidão, sendo a mão de obra africana a principal durante mais de três séculos.

A escravidão só foi formalmente erradicada em nosso país há 128 anos. Mas, apesar de formalmente abolida, os então ex-escravos não conseguiam se integrar ao meio social, pelo preconceito e pela falta de oportunidades, já que se tratava de mão de obra sem qualquer qualificação.

Os reflexos desta dantesca página histórica de nosso país permanecem vivos até hoje. Dados do IBGE informam que a população afrodescendente (pretos e pardos) representam 54% da população brasileira. Contudo, apesar de serem maioria, os negros representam apenas 17,4% da parcela mais rica do país, e, dentre os 1% mais ricos, 79% são brancos. Já entre os mais pobres os números se invertem: No o grupo dos 10% mais pobres (com renda média de R$ 130 por pessoa na família, dados de 2014), o percentual de negros é de 76%.

Documento recente sobre a inserção da população negra no mercado de trabalho produzido pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados na Região Metropolitana de São Paulo, divulgado esta semana, revelou que a diferença salarial entre negros e não-negros com nível universitário aumentou no país no último ano. Para cada R$1 mil ganhos por um trabalhador não-negro, os negros, com mesma escolaridade, ganham R$ 650. O estudo apresenta de forma detalhada a diferença salarial entre pessoas negras e não-negras, inclusive fazendo relação com o nível de escolaridade.

Esta realidade histórica explica o porquê de termos tão poucos negros ocupando espaços nas áreas que exigem maior qualificação, inclusive no serviço público. A nossa Suprema Corte só teve, até hoje, um negro como ministro. Vê-se poucos negros médicos, juízes, engenheiros, políticos, no Ministério Público, etc., são verdadeiramente exceções.

Para reverter esta triste realidade, combater a discriminação e reparar a dívida histórica do país para com a população negra, descendentes daqueles africanos que foram retirados à força de seu país, para aqui serem escravizados, o melhor caminho são as ações afirmativas.

As ações afirmativas foram aplicadas ao longo do tempo em vários países, não é, portanto, invenção brasileira. Nos EUA, por exemplo, após a implantação da Lei dos Direitos Civis de 1964 e das políticas afirmativas houve sensível redução da desigualdade entre negros e brancos. As ações tiveram a adesão de muitas corporações privadas.

No Brasil, o STF declarou constitucional, em junho deste ano, a Lei nº 12.990/2014, que instituiu cotas para negros em concursos públicos, entendendo inclusive que a reserva de 20% das vagas deve valer para todos os certames, tanto da administração direta quanto de empresas públicas e autarquias, e não apenas para ingresso em universidades. O relator da ação, o Ministro Luís Roberto Barroso, asseverou em seu voto, que o país tem o “dever de reparação histórica” devido à “existência de um racismo estrutural na sociedade brasileira”.

Em razão das políticas afirmativas estabelecidas em nosso país a partir do governo do Presidente Lula, o número de negros cursando o ensino superior dobrou, mas, mesmo assim, somente 12,8% da população negra chegou ao nível superior. Há, portanto, muito o que se caminhar para se conquistar a tão sonhada igualdade racial.

As ações afirmativas, portanto, estão relacionadas à reparação histórica de crimes cometidos contra uma população, em razão de sua cor, cujos reflexos perduram até os dias atuais, e se diferenciam das chamadas cotas sociais, embora, na maioria das vezes, tenha esta dupla função, reparatória e social.

No próximo dia 20 de novembro comemoramos o Dia Nacional da Consciência Negra, instituído pela Lei nº 12.519/2011, é um momento oportuno para refletirmos sobre a inegável herança histórica de desigualdade de oportunidades imposta à população negra e buscar formas de corrigi-la, reparando a vergonhosa dívida histórica para com esse contingente populacional. A data faz referência a data morte de Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares, em consequência de sua morte. O Quilombo abrigava escravos fugitivos e chegou a ter uma população de mais de vinte mil habitantes.

É preciso desconstruir o racismo estrutural na sociedade brasileira, a que se referiu o Ministro Luís Roberto Barroso, que se manifesta às vezes de forma expressa, às vezes de forma velada. A declaração preconceituosa do jornalista William Waack, em vídeo que viralizou nas redes sociais semana passada é um exemplo desse racismo impregnado de forma quase cultural no Brasil.

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