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4 de dezembro de 2017
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*Texto publicado originalmente em 09 de outubro de 2017

No jardim da casa não tem democracia. Tem a lei do mais forte, aplicada à miniatura de selva que as formigas trabalham para reorganizar como deserto. Os venenos podem pouco contra a ordem implacável dos ciclos e cios: na primavera, tudo felve. Formigas, besouros, vespas, anuns brancos, lavadeiras, tico-ticos, beija-flores, o timbu (ou um descendente do primeiro) e os gatos noturnos estão nos seus lugares; menos seu Antonio, que este ano ainda não veio. As mangas chegaram antes dele. Já são avistadas à margem dos caminhos, desafiando as cercas, como vírgulas amarelas pedindo para entrar na frase. Mangas espadas, as mais proletárias.

Seu Antonio e o cavalo pedrês que trabalha pra ele estão entre os hits dos meses em berreobró. O nome do cavalo é Cavalo. A maiúscula é de seu Antônio. Ele e o bicho se entendem num dialeto de onomatopeias, sinais sonoros e comandos concisos de braço. Como bom trabalhador, seu Antonio cuida bem de sua ferramenta. Toca o pedrês na boa, sem gritos, sem açoites. No jardim do texto, assim, juntos, os dois parecem gente.

Seu Antônio ganha a vida removendo a metralha do mundo. Um trabalho primitivo até no uso da tração animal. Poderia figurar naturalmente como clichê na boa sociologia ou na má literatura sobre os poderes do povo. Se o povo não pode nem pia na putaria cívica nacional, seu Antonio ilustra o distanciamento. Não foi ao golpe. Não vai às ruas cortar cabeças de corruptos nem vai reformar o Congresso no voto.

Esteve ocupado com o de sempre: dormir e acordar cedo, ser parte do seu ecossistema, sem tempo para o clichê sociológico ou literário que o texto lhe atribui. Vota porque a lei obriga. E porque, a velhos como ele, o rito que define o jardim da democracia burguesa talvez guarde ainda algum encanto solene.

Seu Antonio não entende como alguém pode gastar água com prantas que não são de comer. Um poeta ou um gastrônomo poderia responder com uma metafísica das flores ou uma gastronomia floral. Mas há que admirar o sertanejo atávico no velho, com a sede de mil barragens. E com um marketing pessoal baseado na simpatia sem dentes e no hábito generoso de recolher mangas no terreno do filho e à margem dos caminhos, para distribuí-las aos conhecidos na vizinhança. Mangas são de comer.

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