Algemas, invasões e pós-verdade
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Algemas, invasões e pós-verdade

22 de setembro de 2018
Algemas, invasões e pós-verdade

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Dedico esse texto a Valéria e a todas as mulheres que têm suas narrativas silenciadas.

Hoje eu gostaria de falar sobre mulheres algemadas e hackeadas.

Para isso, esse texto trará um relato de alguns acontecimentos que estão sequestrando nossas mentes e corações rumo à constatação de que precisamos nos (re)conectar com o real e o factual.

No último dia 10 de setembro, a advogada Valéria Lúcia dos Santos, em audiência no 3º Juizado Especial Cível de Caxias do Sul (Rio de Janeiro), foi algemada e detida por policiais militares em pleno exercício da profissão. Na ocasião, estava substituindo outra profissional em uma ação denominada como “obrigação de fazer”, decorrente de uma cobrança indevida a sua cliente por uma empresa de telefonia. A proposta da parte ré (a empresa de telefonia) não foi acatada pela autora, motivo pelo qual, no momento, foi apresentada contestação da empresa ao pedido em discussão. Nesse instante teve início a cena que ganhou destaque na imprensa e nas mídias sociais, já que o pedido da advogada de conhecer o teor da contestação foi negado pela juíza leiga (Ethel de Vasconcelos). Isso levou Dra. Valéria Lúcia a requisitar a presença de um representante da OAB, um “delegado de prerrogativas”, a fim de que ele verificasse a regularidade do rito e se algum direito inerente à profissão da advocacia estaria sendo violado.

Sem que ele fosse chamado pela própria juíza leiga, a advogada tomou a decisão de ir, pessoalmente, requisitar tal presença. Dirigiu-se ao 4º andar do Fórum e comunicou a necessidade de sua presença no 3º Juizado Especial Cível daquela Comarca. Retornando à sala de audiências, soube que a audiência de sua cliente já havia sido encerrada, o que lhe fez permanecer no local até que visse a peça da contestação e que o delegado de prerrogativas pudesse chegar e constatar a violação de seus direitos que a advogada entendia estar acontecendo ali.

Nesse momento, a juíza leiga diz que a advogada espere do lado de fora da sala a chegada do delegado de prerrogativas. Não aceitando ser excluída do recinto, Dra. Valéria mantém sua decisão de permanecer à espera de um representante da OAB, quando a juíza disse que iria chamar os policiais militares... e o fez!

Eles chegaram (os policiais) e mesmo com as alegações da advogada deram início a outro conjunto de violações.

Primeiramente, descumpriram a súmula vinculante nº 11, do STF. Essa súmula define que “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. A Dra. Valéria foi arrastada até o corredor e lá foi algemada, sentada no chão.

Ademais, os policiais descumpriram dispositivos de uma lei federal, o artigo 7º do Estatuto da Advocacia e da OAB, em seu inciso IV e em seu § 3º. Segundo esses dispositivos, “O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável”, observando-se, nessa hipótese excepcional, que é direito do advogado “ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade (...)”.

Valéria disse que tudo foi muito rápido, desde o início dos desentendimentos até ser retirada da sala. Quando foi algemada, assim permaneceu por cerca de 2 minutos, quando o delegado de prerrogativas da OAB chegou e apenas se apresentando como advogado disse: “tirem as algemas dela!” Simples assim...

Os desdobramentos já conhecemos: reação da OAB, apurações iniciadas para investigar a conduta da juíza e dos policiais; ato de audiência anulado e remarcado, ato de desagravo diante do Fórum de Duque de Caxias e a averiguação do episódio no Conselho Nacional de Justiça e na própria OAB, já que a juíza leiga é, antes disso, uma advogada inscrita e com deveres profissionais.

Recebendo grande solidariedade de colegas de profissão e pessoas de todo país, Valéria não quis se identificar como vítima do racismo, já antevendo a rebordosa que receberia, sendo acusada de que estaria “mi-mi-miando” ou apelando para o vitimismo. Ela acentuou que apenas queria poder exercer o seu ofício e que sobre a atitude da juíza leiga seu desejo era apenas de conversar, pois assim acredita estar construindo um mundo melhor.

Passemos agora ao segundo episódio recente: uma conta de Facebook hackeada.

Trata-se do grupo “Mulheres Unidas contra Bolsonaro”, criada em 30 de agosto de 2018 e que já tinha quase dois milhões de participantes. No dia 14 de setembro, o celular de uma das administradoras do grupo, Maíra Motta, parou de funcionar, dando início a atos típicos de um crime cibernético. Como efeito, mensagens de ódio foram encaminhadas para seus contatos de sua conta no Whatsapp, o grupo no Facebook foi invadido e os dados pessoais de algumas de suas administradoras foram expostos. Suas senhas foram alteradas e o nome da página foi alterado para “Mulheres com Bolsonaro”. A página foi retirada do ar pelo Facebook por atividade suspeita e em seguida devolvida às administradoras. Contudo, apenas naquele final de semana, foi invadida e restaurada por duas vezes. Os perfis de algumas administradoras também foram invadidos, com sequestro de suas senhas de acesso e uso de informações pessoais. Antes disso, suas administradoras e moderadoras já tinham recebido ameaças via whatsapp, com prazo de 24 horas para que retirassem o grupo do ar, sob pena de terem dados pessoais sensíveis divulgados, como o número de CPF, RG, título de eleitor e filiação.

O fato está sendo apurado pelo Grupo Especializado de Repressão aos Crimes por Meios Eletrônicos, da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia. A página ainda está passando por análises e verificação do perfil das integrantes.

Se essas duas histórias lhe parecem factíveis ou verdadeiras, mesmo assim nem sempre são compreendidas da mesma forma. Isso porque estamos num cenário que alguns denominam como a “era da pós-verdade”, o que faz com que a noção do que é “verdadeiro” passe por um filtro específico de suposta verificabilidade: o afeto.

Pós-verdade é uma expressão que, embora não revele em seu conteúdo uma novidade de atitude diante do real, recentemente (2016) despontou como a “palavra do ano”, assim eleita pela Universidade britânica de Oxford.

Em sua definição, trata-se de um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

Assim, ao que nos afeta ou ao que nos toca o sentimento que mais importa para classificar uma informação como verdadeira ou falsa. Na era da pós-verdade, perdemos o vínculo com o real e o factual, de modo que a seleção do que é “verdade” deixa de ser objetiva para ser meramente afetiva. Noutras palavras, é nossa “vontade de acreditar” que torna um conteúdo verdadeiro.

Certamente esse fenômeno pode levar a confusões profundas e até a atitudes inconsequentes, irresponsáveis e criminosas quando, além de acreditar com base apenas nesse tipo de critério, disseminamos informações que não sabemos a procedência, a credibilidade de sua fonte, os recortes ou marcadores de sua narrativa ou os interesses que lhe animam.

Duvidar sobre o que acreditamos/sabemos é, portanto, uma atitude responsável e honesta num mundo em que estamos atordoadas/os pela ‘volatilidade das certezas’ e por tantos estímulos informacionais.

Quando o excesso se torna ruído, o ato de duvidar nos chama a atenção para o fato de que ‘informação tem consequências’ e por isso nosso compromisso com a democracia é cuidar para que informações muitas vezes falsas e propositadamente construídas não se disseminem, tampouco com a nossa complacência ou colaboração.

Contudo a pós-verdade não está apenas naquilo que nos chega pronto como informação, mas também nas tentativas de manipulação das informações e na (re)construção de narrativas para que nossa crença e vontade continuem intactas. Pudemos constatar esse arranjo nos dois episódios que acabamos de narrar.

Sobre o primeiro, embora um vídeo (dividido em três partes) tenha viralizado na internet, ainda se buscou uma des/reconstrução daquela narrativa. Em coletiva concedida à imprensa brasileira no dia 11 de setembro, na sede da OAB do Rio de Janeiro, a Dra. Valéria Lúcia dos Santos respondeu às perguntas dos/das jornalistas: mas, de fato, o que aconteceu?,... a advogada, pacientemente, reconta a história a que todos/as tiveram acesso e finaliza “o vídeo fala por si só, gente! Não tenho muito o que relatar... aí vocês tiram as conclusões de vocês. É o Brasil que a gente quer?”.

A pergunta seguinte foi: a Senhora não estava (habilitada) nos autos (processo)? E essa questão da identificação, pode explicar um pouquinho sobre isso? A advogada oferece uma resposta técnica, explicando que estava atuando dentro do que lhe permite a lei processual, mas adiciona outro elemento para a análise: o cerceamento de defesa de sua cliente em face de ter sido impedida de cumprir seu papel como profissional.

Intercalada por outros colegas, outras perspectivas se somam ao momento da entrevista, a exemplo de: “não existe justificativa para o que aconteceu” (Luciano Bandeira – Presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ) ou “além dessa questão da prerrogativa... nós advogadas, nós mulheres sofremos muitas violências todo dia... Todas nós fomos algemadas naquele momento e para nós foi uma dor muito grande ver esse vídeo...” (Marisa Gaudio – Presidente da Comissão OAB Mulher/RJ).

Outra colega pede a palavra e acentua: “Numa sociedade que é marcada pela força do trabalho escravo, a gente não pode ignorar que nossa sociedade foi forjada dentro de um modelo de produção escravagista, os marcadores de raça e cor jamais poderão ser ignorados... porque esses “acasos” acontecem todos os dias em audiências com outras advogadas negras que não conseguem pontuar que isso é racismo direto, mas que a gente entende que é racismo estrutural. Nós nunca vimos aqui na casa um outro advogado, de outra raça e de outra idade ter sido algemado e levado ao chão”. E finaliza: “...nós sabemos que nesse país quem é algemado tem cor e raça!” (Mariana Marçal – Coordenadora do GT Mulheres Negras da OAB/RJ).

O Presidente da Subseccional da OAB em Duque de Caxias, ao fazer uso da palavra ressaltou que “a questão de fundo é a dignidade da pessoa. Jamais podemos admitir que num recinto de tribunal, numa sala de audiências, (...) essa pessoa possa sofrer tamanha violência”.

Mesmo com todos os pontos levantados pelos integrantes da mesa (cerceamento de defesa, violação de súmulas e leis federais, questões de gênero, racismo estrutural e dignidade humana), além das explicações técnicas e didáticas do que a lei garante às/aos profissionais da advocacia para o exercício de seu mandato, a pergunta seguinte foi, mais uma vez, sobre “como o fato aconteceu”, numa tentativa de “reconstituição” da cena.

Pois é, mesmo com muitos recursos para ampliar as possibilidades de pergunta e a abrangência da cobertura, todos esses aspectos foram “silenciados” na abordagem da imprensa. Vemos, com esse recente exemplo, o quanto a imprensa silencia sobre os temas incômodos que permeiam nossa sociedade, principalmente quando praticado dentro de instituições que são tratadas como se estivessem acima dos erros e misérias humanas.

Em minha análise, na busca de uma narrativa que não exponha essas instituições e pessoas, a ênfase das perguntas era: mas o que aconteceu (ou, o que você fez) para ter sido algemada? Com isso, aquela entrevista servia para fazer de Valéria o “pivô” da história e não o sistema dentro do qual a situação se desenrolou.

Diante de uma história que escancara as verdades inconvenientes de muitas mulheres e mulheres negras dentro do Judiciário e perante órgãos de repressão do Estado, o apego à pós-verdade tinha que recorrer a sua última alternativa: construir outra narrativa para os fatos, relativizar as violências, silenciar sobre as questões de fundo e minimizar os impactos desse acontecimento factual.

Se nos reportarmos à segunda história, também podemos encontrar indícios desse “deslizamento de sentidos”. Com o grupo de “Mulheres Contra Bolsonaro” criado e potente, logo começaram a circular as teses que tentavam descredenciar sua credibilidade. Uma delas seria a de que se tratava de um grupo de humor “comprado” (supostamente antes denominado de “Gina Indelicada” ou “Gina Sincera”), que já existia e possuía 800 mil integrantes. Essa informação foi desmentida pelo próprio Facebook, ao informar que se tratava de uma nova conta (criada em 30 de agosto de 2018) e que seu nome nunca havia sido alterado até o episódio da invasão.

Além dessa notícia, um post publicado no perfil “Eu Sou Mais Brasil”, do Facebook e que viralizou nas redes sociais também trazia um informe duvidoso: o de que Bolsonaro “é líder absoluto entre as mulheres que gostam de depilar as axilas”.

Fico aqui me perguntando se alguém que disseminou esse post realmente acredita que existe nas pesquisas de opinião algum indicador que verifique, entre as mulheres, se elas depilam a axila. Peço desde já calma aos que acreditam que eu não entendi a ironia. Certamente sim. Mas, indo além dessa ironia pobre, entendo que outras questões estão presentes nessa mensagem, a exemplo da total falta de compromisso com os aspectos sérios que esse debate contempla e nenhuma relação com o mundo dos fatos.

Esse dado, assim como a acusação de que o grupo era “comprado”, sem qualquer evidência concreta que sustentasse tal afirmativa, é tão leviano quanto o posicionamento de algumas pessoas diante do vídeo divulgado pela Embaixada alemã em suas redes sociais. O vídeo trata do perigo das ideias nazistas e de como o tema é tratado na Alemanha atualmente. Primeiro, destaca que “os alemães não escondem o seu passado” e que naquele país “é crime: negar o holocausto, exibir símbolos nazistas e fazer a saudação ‘heil Hitler’”. Traz uma frase do seu Ministro das Relações Externas, Heiko Maas: “devemos nos opor aos extremistas de direita” e que “devemos mostrar a nossa cara contra neonazistas e antissemitas” (vídeo da Embaixada Alemã disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R7GiXWZBgOw).

Contudo, algumas pessoas reagiram à publicação, alegando que o vídeo seria uma "propaganda sionista" (coisa de judeu) e se queixando da alegação de que o nazismo seria uma expressão de ‘extrema direita’, já que o partido de Hitler se denominava “Partido dos Trabalhadores Socialista”.

Não bastasse os brasileiros pouco estudiosos se dedicarem a tentar confrontar a compreensão que os alemães fazem de sua própria trajetória, ainda há uma série de “equívocos” que a Embaixada vem tentando responder. Contudo, exaurem-se certas forças quando o argumento de quem acredita ser o nazismo um movimento da esquerda se baseia no nome do partido de seu líder ou na compreensão de que “o nazismo jamais poderia ser considerado de Direita, pois para isso precisaria ser a favor do liberalismo econômico, do capitalismo e do Estado reduzido, e isso nunca aconteceu” (Eduardo Bolsonaro, candidato à reeleição como deputado federal pelo estado de São Paulo/PSL).

Na prática do que os historiadores chamam de ‘anacronismo’, o Deputado e seus seguidores tentam avaliar um fato histórico a partir de uma perspectiva atual. Assim, praticam um irrefutável engano quando tentam relacionar a esquerda apenas com o tamanho do Estado e a direita ao mero liberalismo econômico.

Nesse esforço simplificador da realidade e de querer (re)colocar o mundo numa lógica binária, um grupo autêntico foi fraudado, mulheres que foram dormir “contra” acordaram “a favor”, o holocausto foi negado, a direita nazista virou esquerda socialista e uma advogada que exigia o cumprimento da lei foi algemada.

Mas algo pode nos redimir: os dois milhões de mulheres hackeadas são de verdade, o holocausto aconteceu de verdade e Valéria foi, verdadeiramente, ofendida, humilhada e violada em seus direitos.

Reconecte-se com os fatos. Não confunda “verdade” como a mera vontade de acreditar e lembre-se sempre: quando a informação que você dissemina não se responsabiliza por suas consequências, sua mente algemada sequestra nossa democracia.

Obs.: Ofereço essa leitura para o Professor Joaquim Fontes Galvão, que colaborou para minha reflexão ao me enviar o post a seguir. Mas eu não passei adiante!

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