De Auschwitz a Alcaçuz, o triunfo do mal
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De Auschwitz a Alcaçuz, o triunfo do mal

10 de junho de 2018
De Auschwitz a Alcaçuz, o triunfo do mal

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Um ônibus estacionou nos fundos de um gueto onde centenas de policiais formavam um enorme corredor humano. Todos extremamente armados, alguns cobriam o rosto, mas faziam questão de ostentar suas medalhas e condecorações, além de sua patente na hierarquia militar. Uma dúzia de pessoas caminhava de cabeça baixa pelo corredor, em passos lentos, com as mãos cruzadas para trás. O trajeto acabava naquele ônibus, depois outra dúzia de pessoas chegava, depois meia centena de pessoas, depois uma centena. Ao lotar um ônibus, outro chegava logo em seguida.

O destino final daquelas pessoas foi um campo de trabalho e estudo, onde ficaram confinados sob tutela do Estado até que cumprissem a pena imposta por serem quem eram. Ao chegarem no campo de concentração, eram obrigados a fazer um registro, com captura de digitais, fotos, raspavam a cabeça para evitar a proliferação de piolhos e recebiam um fardamento para serem identificados como prisioneiros. A partir daquele ponto, não possuíam mais identidade e deveriam se submeter a uma disciplina militar que buscaria a cada dia, adestrar o seu corpo e docilizar o seu espírito.

A estadia num campo de concentração era marcada pelo terror da morte. O uso do medo como estratégia de controle sempre é prioridade. Vez ou outra algum deles era torturado pelos agentes servindo de exemplo aos demais, alguns morriam desnutridos, outros de doenças simples que rapidamente se proliferavam. Alguns registros apontam que uma quantidade significativa destas pessoas possuía tuberculose e outras doenças graves. Pouca comida deixava-os rapidamente desnutridos e quase nada resistentes ao contágios de doenças infectocontagiosas. Para cada galpão ou cela, grupos de 30 homens dividem uma mesma escova de dente. A cada semana, uma equipe médica era levada para cada pavilhão, onde os presos são tratados com pouco ou quase nenhum medicamento. Uma foto do atendimento sempre era tirada para os relatórios oficiais demonstrarem a existência da oferta de atendimento de saúde regular. Apenas quatro ou cinco num universo de três ou quatro mil eram atendidos.

Para garantir o controle sobre eles, além da fome que logo os enfraquecia, as mãos e dedos eram quebrados. Fotografias e depoimentos de sobreviventes às torturas exibem suas mãos com todos os dedos quebrados. Foi a estratégia que o Estado encontrou para impedir túneis, brigas e fugas. Sem identidade como humanos, sem documentos, sem direito a visitas de familiares, sem alimentação, sem direito a advogados, sem acesso a auxílio religioso, sem trabalho, sem estudo, sem recreação, o objetivo dos campos de concentração logo se revelaram: impor sobre eles toda a podridão do espírito humano. A resposta para todos os fracassos do Estado era dada alí, para aquele grupo que não tinha poder sobre si, sem direito a fala, sem direito a Justiça.

Este relato descreve parte de uma rotina imposta por um Estado violento, incapaz de perceber que todo o investimento para controle daquelas pessoas, revelou mais sobre si do que sobre eles. É um relato sobre a rotina de Alcaçuz, não de um campo de concentração nazista, como pode parecer. As prisões brasileiras e Alcaçuz em especial, não diferem em quase nada de um campo de concentração nazista. A única diferença é que os sujeitos aprisionados cometeram crimes e devem cumprir pena como determina a Lei e não como fazem os agentes que a executam. As rotinas disciplinares aplicadas sobre eles repetem o ódio humano e um certo gozo pela dor alheia. São sujeitos descartáveis, são monstros, indesejáveis, irrecuperáveis, sujos e portanto, matáveis. A grande contradição no pensamento banalizador do mal, é que estas pessoas conseguem sobreviver ao sistema e um dia alcançam a liberdade, assim como milhares de judeus sobreviveram aos campos de concentração nazista.

No ano de 1960, um importante líder nazista, Adolf Heinchman, foi encontrado pelo Serviço Secreto de Israel vivendo na Argentina. Ao ser preso, foi levado a Jerusalém para seu julgamento pelo Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Câmaras de gás, fuzilamentos, torturas, enforcamento, fome, incineração em massa, ficaram conhecidos pela história como a “Solução Final”. Um conjunto de estratégias para aniquilar os judeus presos em campos de concentração que buscava garantir uma limpeza social baseada nos princípios sádicos da dor e da morte. Alguns livros de sobreviventes do holocausto relatam que os agentes prisionais disputavam entre eles para assistir as mortes nas câmaras de gás, choque elétrico e fuzilamentos. Existia uma carga muito forte de prazer no sofrimento provocado.

Hannah Arendt, uma filósofa judia, foi escolhida correspondente da revista “The New Yorker” para acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. Seus relatos logo tornaram-se um dos livros mais vendidos no mundo, demonstrando como o mal torna-se assim, banal. Segundo a escritora, Eichmann aparentava ser um cidadão normal. Aquele era o maior julgamento de um nazista após o Tribunal de Nuremberg, e todo o mundo estava a espera de ouvir o monstro responsável pela aniquilação de milhões de Judeus das mais diversas formas. Em vez de um monstro sanguinário que todos esperavam ver, surge um funcionário, um burocrata, um sujeito que agia sob a proteção do Estado e das normas estabelecidas pelo Sistema. Foi a partir deste cenário controverso que percebemos que os algozes escondem-se atrás dos seus cargos, das suas fardas e dos procedimentos de segurança.

Esta semana, a Pastoral Carcerária do Rio Grande do Norte divulgou um profundo relatório denunciando o aniquilamento de pessoas no presídio estadual de Alcaçuz. A denúncia se estende a outros espaços prisionais, mas é certo que Alcaçuz reúne todas as piores formas de tortura inventadas pelos humanos até hoje. Os algozes, diretores, agentes, coordenadores, assistentes, equipe médica, assistencial, policiais, ou executam as torturas, ou são coniventes com elas. O maior responsável pelas desgraças implementadas atrás dos muros das prisões têm nome e cargo político, são conhecidos pela mídia, respeitados entre a sua categoria, mas poucos percebem que suas mãos estão sujas de sangue.

Outros relatórios já foram divulgados nos últimos dois anos. O relatório de ativistas contra as torturas e maus tratos antes e após o massacre de Alcaçuz, que rendeu uma denúncia internacional à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, D.C., Estados Unidos. Outros relatórios como do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à tortura, além de centenas de denúncias na imprensa nacional e internacional destacam a atuação desses gestores que assim como Adolf Heinchman, um dia serão julgados e punidos.

Uma das coisas mais certas neste trágico cenário é que assim como os judeus sobreviveram e denunciaram seus torturadores, os prisioneiros brasileiros, grande parte deles membros de organizações criminosas, também sobrevivem e retornam às ruas. Enquanto o Estado não corrigir suas profundas violações à dignidade humana, os presídios permanecerão sendo um laboratório do mal, um espaço onde seus sobreviventes aprendem a utilizar a morte como estratégia de dominação. As ruas do Rio Grande do Norte revelam claramente a escola pela qual grande parte dos criminosos passa. Os campos de concentração potiguares, quando não matam, preparam seus prisioneiros para serem do lado de fora tudo aquilo que experienciaram lá dentro. E os algozes pensam que passarão despercebidos. O nome deles não está neste breve artigo, mas está registrado na história das desgraças do nosso estado. E um dia quem sabe eles sentem num banco dos réus para serem responsabilizados por tudo. O tempo histórico não tem pressa, mas ele chega.

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