Entre facadas e chamas
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Entre facadas e chamas

9 de setembro de 2018
Entre facadas e chamas

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Em uma semana, o perfil predatório, violento e destrutivo da elite brasileira se materializou em dois eventos que ficarão marcados na história do país. Entre a noite do dia 02 e a madrugada do dia 03 de setembro, um acervo de mais de vinte milhões de itens, reunidos em dois séculos pelo Museu Nacional, foi completamente devorado por um incêndio que transformou em cinzas uma parte da história do país, da memória da pesquisa científica, fazendo poeira do esforço de centenas de cientistas que fizeram daquela instituição uma referência em estudos no campo da etnografia, da etnologia, da antropologia, da zoologia, da botânica, da arqueologia, da paleontologia, etc. Em meio às chamas desapareceram, em agonia, a coleção de peças egípcias iniciada por D. Pedro II; a coleção de arte e artefatos greco-romanos da imperatriz Teresa Cristina; esqueletos de dinossauros, como o Maxakalisauros topai; “Luzia”, o mais antigo fóssil humano encontrado no país, milhares de objetos pertencentes a culturas indígenas, já destruídas pela voragem da elite branca brasileira, outros tantos objetos pertencentes a etnias africanas, arrastadas como escravos para ser vítimas da violência e predação dos senhores da terra; coleções de insetos, borboletas, conchas, corais; além de uma biblioteca voltada para o campo da antropologia com mais de 200 mil títulos catalogados.

Na tarde do dia 06 de setembro, em Juiz de Fora, o candidato de extrema-direita à Presidência da República, Jair Bolsonaro, viu se materializar em seu próprio corpo a violência que vinha pregando como solução para os problemas de segurança no país. O candidato que, em campanha no Acre, havia sugerido que fossem exterminados os petistas do estado, declaração considerada normal pela chefe do Ministério Público Federal, a Sra. Raquel Dodge, recebeu, enquanto caminhava pelas ruas da cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais, uma facada no abdómen, desferida por um homem identificado como sendo Adélio Bispo de Oliveira, de 40 anos, com nítidos sintomas de problemas mentais, o que não o destacava entre os seguidores do candidato extremista. Dizendo-se inspirado pelo divino, o que não é uma novidade nesses dias em que vive o país, já que o próprio candidato foi se banhar nas águas do rio Jordão, disse ter uma questão pessoal a resolver com o valente candidato, que vinha na campanha se notabilizando por ensinar a crianças a como atirar. A Polícia Federal, onde não faltam admiradores do candidato, deverá explicar como seus agentes, que deveriam proteger quem pode ser o futuro presidente do país, permitiu que o candidato fosse esfaqueado por um homem solitário e sem nenhum esquema prévio montado para cometer o atentado. O ódio que se espalhou pelo país nos últimos anos, e costuma fazer vítimas entre os quadros da esquerda, chegou agora ao outro extremo político. Se Lula e sua caravana se safou de um atentado a bala, ainda não esclarecido e com ninguém punido; se a vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco foi executada em plena rua, sem que as autoridades tenham sido capazes, até agora, de desvendar o crime; o fato do desequilibrado que esfaqueou Bolsonaro tenha sido filiado por sete anos ao PSOL, logo se tornou motivo para dar ao atentado conotações políticas, negadas pelo agressor. Irresponsavelmente, o candidato a vice-presidente na chapa do PSL, o general Hamilton Mourão, foi logo acusando o Partido dos Trabalhadores pelo atentado, quando nada se fala dos vários ataques a sedes do PT, cometidos por militantes de extrema-direita.

O incêndio do Museu Nacional simboliza o total desprezo que as elites econômicas e políticas do país têm em relação a cultura, a ciência, a educação, a inteligência, em geral. A cultura é considerada um mero enfeite, algo decorativo e sem importância, coisa de esquerdista e de quem não tem o que fazer. Temos uma elite colonizada que adora exibir a visita que fez ao museu de Paris, Londres ou Nova York, como mero compromisso turístico, destinado a fazer muitas fotos e selfs e exibir nas redes sociais, sem que ela signifique nenhum aprendizado e experiência concreta em termos estéticos, cognitivos e imaginativos. A grosseria e a rudeza de uma elite descendente de fazendeiros e senhores de escravos ou de imigrantes saídos de campos miseráveis; entupida de preconceitos e estereótipos nascidos de uma formação religiosa; educada na base do chicote, da palmatória e da bofetada; nascida em um ambiente de prepotência, exploração e ganância; com uma sensibilidade formada pelo machismo, pela racismo, pela misoginia, pelo desprezo em relação ao pobre e ao carente; se manifesta em sua ignorância e prepotência, em sua total incapacidade de valorizar as artes, a literatura e a produção cultural. O que esperar de ruralistas, que produzem senadoras que, embora tenha trabalhado por anos nos meios de comunicação, faz apologia da chibata e da violência como forma de resolução de conflitos? Os grandes empresários rurais que veem nos indígenas e suas culturas meros óbices para a expansão indefinida do agronegócio e do latifúndio, não vão lamentar que o acervo etnográfico do Museu Nacional tenha sido devastado pelo fogo.

O incêndio do Museu Nacional demonstra a total falta de interesse, por parte de nossas elites dirigentes, de preservar vestígios e documentos do passado. O desamor, quando não o desprezo e o medo pela/da história, é fruto do fato de que essas elites têm muito o que esconder, há muitas coisas que elas querem ver esquecidas. A reação contra a Comissão da Verdade, criada no governo Dilma, um dos fatores que levaram setores da sociedade e das instituições de Estado a votarem verdadeira aversão ao governo petista, mostra como há muita gente nesse país a quem não interessa arquivos, documentos, a preservação da memória. Quando se tem muito a esconder, quando muitos crimes impunes foram necessários para se ter o que se tem e chegar aonde se chegou, o que menos interessa é a preservação de registros e relatos. A queima sistemática de documentos é uma tônica no país. As chamas que consumiram o Museu Nacional apenas é um acontecimento maior que simboliza toda uma prática sistemática de destruição patrimonial e documental no país. O poder Judiciário tem sistematicamente mutilado a memória do país ao dar fim a seus acervos alegando falta de espaço para guardá-los, mesmo diante dos prédios faraônicos que costuma construir para suas instalações. Em pleno governo Lula, foram flagradas queimas de documentos referentes ao período da ditadura civil e militar iniciada em 1964. Fazer do passado cinzas é fundamental para uma elite que se formou e se sevou na predação dos recursos do país e na exploração brutal do trabalho humano. Esperar que sejam essas elites, através de instituições privadas, que vá zelar pelos acervos, pelos museus e pelas instituições culturais do país é fazer de conta que não se conhece a atitude histórica desses setores em relação a essas dimensões da cultura do país. Com raras e notórias exceções, aos empresários brasileiros não interessa senão aquilo de que se pode retirar o lucro maior possível e no tempo mais curto possível. As propostas de privatização das entidades culturais, com a criação de Organizações Sociais, e o discurso de que o Museu Nacional se incendiou pela incompetência da gestão pública é, literalmente, uma cortina de fumaça, para encobrir o criminoso corte de recursos realizado pelo governo golpista, que chegou ao poder, justamente, apoiado nesse discurso neoliberal da superioridade da gestão privada.

O golpe de 2016 levou ao poder a parcela mais predatória de nossas elites, em associação com a predação do capitalismo internacional. Se o Museu Nacional se transformou em cinzas, antes, esse governo já havia transformado em pó as esperanças e sonhos de milhares de brasileiros em ter uma vida digna, em trabalhar, em estudar, em cursar uma faculdade, em ter saúde. Reduziu a restos os recursos destinados aos programas sociais e mesmo aqueles destinados a construção de obras de infraestrutura no país. Em colaboração com as ações golpistas do poder Judiciário, reduziu a escombros setores inteiros da economia brasileira e fez escoar para o exterior muitas das nossas riquezas. O incêndio do Museu Nacional simboliza essa política de destruição, de desmonte do país, levada a efeito por elites que não possuem nenhum sentido social, nenhuma ligação efetiva e afetiva com a nação, que pensam apenas em seus interesses imediatos e mesquinhos. A consultoria da própria Câmara dos Deputados constatou que entre 2013 e 2017, as verbas destinadas ao Museu Nacional encolheu R$ 336 milhões. Em 2013, o Museu Nacional recebeu cerca de 979,9 milhões de reais vindos do orçamentos dos Ministérios da Educação e da Cultura, enquanto até agosto desse ano tinha recebido pouco mais de R$ 98 milhões de reais, consequência direta do corte brutal nos investimentos públicos motivados pela aprovação no governo golpista de Michel Temer da chamada PEC da Morte, a PEC 241, que praticamente congelou os gastos públicos por vinte anos. Enquanto o governo enche os bolsos dos empresários com perdões de dívidas e desonerações de impostos, tem imposto aos órgãos públicos um corte assustador nos recursos para custeio. Essa política não é surpreendente pois foi para isso que o golpe foi perpetrado, ou seja, para mais uma vez submeter totalmente o Estado à lógica e aos interesses do setor empresarial e bancário. A maioria daqueles parlamentares que aprovaram essa PEC estão novamente aí nos palanques pedindo votos, muitos hipocritamente falando mal do governo Temer e muitos, agora, penalizados pelo que aconteceu com o Museu Nacional. Até um grupo de banqueiros se reuniu para ver o que podem fazer com o cadáver insepulto do passado nacional.

Em 1940, diante da vitória do nazismo na Alemanha, o filósofo Walter Benjamin, escreveu o famoso texto intitulado Teses sobre o conceito de história, nele ele comparava a história dos vencedores como um acumular constante de ruínas e de escombros. Escrito no que ele chamou de “um momento de perigo”, nele ele alertava para o caráter quase sempre destrutivo daquilo que as elites dirigentes chamavam de progresso. No momento em que o Brasil vive um momento de perigo, em que o fascismo anda nas ruas, em que um candidato autoritário, despreparado, que faz apologia da violência, de crimes como a tortura e o estupro, têm o explícito apoio dessas ditas elites econômicas e políticas, a leitura desse texto de Benjamin nunca me pareceu tão atual. Começamos a presenciar no país o que se viu na Alemanha antes da acensão de Hitler ao poder: a tentativa de se resolver diferenças políticas com a força e a violência. O uso desabrido do sistema policial e de justiça para se afastar os opositores do sistema. A cassação da candidatura de Lula a presidência da República, pelo Tribunal Superior Eleitoral, na base da chicana jurídica, da encenação de um julgamento justo, ao arrepio das leis nacionais e internacionais, mostra que vivemos o momento perigoso de um Estado de exceção, onde o justiçamento com as próprias mãos pode vir a se tornar rotina (os meios populares já vivenciam isso todos os dias), diante da oferta explícita de injustiça por um aparelho jurídico caro, cheio de privilégios, insensível e descolado da realidade nacional, como a reivindicação de um aumento de salário de 16%, num momento em que muitos voltam a passar fome, deixa explícito. Esperamos que a lamentável facada no candidato da direita não se torne rotina, destruindo de vez o que resta de espaço democrático no país. Embora ele vivesse fazendo apologia do uso de armas, as pessoas que verdadeiramente tem apreço não só pela democracia, mas pela civilização, pela civilidade (o que não é o caso do próprio Bolsonaro e de muitos de seus seguidores), não podem aceitar e apoiar o uso da faca como argumento político, nem o uso da espingarda ou do fuzil. Voltarmos a isso seria o pior dos mundos. Evitar isso era, e continua sendo, o motivo para recusarmos e trabalharmos fortemente contra a plataforma de um candidato como Bolsonaro. Ele sentiu na pele o que seu discurso irresponsável de incitação à violência e a proposta de distribuição à farta de armas, pode resultar.

Além da facada no candidato, o maior escândalo deveria ser causado pelo fato de que a Bolsa de Valores, onde opera a nata empresarial brasileira, tenha entrado em euforia mórbida por causa do acontecido. Mostrando de forma didática que dinheiro e capital desconhece ética, moral ou valores, embora seus representantes costumem fazer discursos hipocritamente moralistas, os cotistas da Bolsa de São Paulo, os rentistas que sugam boa parte da poupança nacional, mostraram o seu inequívoco apoio a um candidato que sabem ser despreparado em todos os sentidos, inclusive do ponto de vista emocional, de postura mesmo, para ocupar o mais alto cargo do país. O estatuto ético e político de nossas elites empresariais queda desvelado pela comemoração de um atentado contra a vida de um candidato, só porque essa foi interpretada como algo favorável a uma sua possível vitória. Não se iludam, assim como na Alemanha nazista, de mau ou bom gosto, quase todos os grandes capitalistas do país serviram e se locupletaram do regime de força e assassino, aqui, onde empresários comemoram facadas como favorável a seus investimentos, não será diferente. Os mesmos empresários que financiaram um golpe contra um governo que tentava, de forma tímida, trazer a civilidade e a civilização para o país, inclusive investindo, como nunca antes, em cultura, inclusive em políticas para os museus, embora sempre ficando aquém do necessário, dados os anos de penúria e abandono, serão agora capazes de apoiar a ascensão ao poder de um tiranete, de um homem sem equilíbrio (como fizeram em 1989 ao apoiarem Fernando Collor de Melo), desde que não chegue ao poder alguém que tente trabalhar para atender os interesses da maioria da população.

Durante séculos de nossa história os poderosos resolveram suas questões à bala. Ainda hoje, usam e abusam da violência para manterem seus privilégios, inclusive para ampliarem suas propriedades. Lideranças sindicais, notadamente no campo, são assassinadas todos os anos. Militantes por direitos humanos, por moradia, por melhores condições de vida e trabalho são abatidos todos os anos. A facada em Bolsonaro, um fato raro, já que dificilmente isso ocorreu em campanhas presidências, é, como o incêndio do Museu Nacional, apenas um episódio entre as chacinas e depredações que sustentam a ordem no Brasil. Num clima político de extrema polarização, onde as ameaças de morte se espalham pelas redes sociais, a campanha presidencial se tornou um empreendimento de alto risco. Por mais absurdo que possa parecer, Lula pode estar tendo sua vida protegida pela prisão. É preciso tomar as providências para o que ocorreu nessa quinta-feira não gere uma reação em cadeia, para que as dissensões políticas sejam resolvidas apenas nas urnas, como requer um ambiente verdadeiramente democrático. Para isso prisões e julgamentos não deveriam fazer parte do jogo político. Um judiciário politizado é uma ameaça à democracia, pois, sem respeito a justiça pode-se criar um ambiente de resolução direta dos conflitos. Cansados de ser perseguidos por quem deveria ter a máxima possível isenção, pode-se perder o respeito a justiça e se buscar fazê-la por sua conta. Não parece ser o caso do atentado a Bolsonaro. A mídia deve, finalmente, ter responsabilidade nesse momento e não tentar usar o fato para açular ainda mais o ódio na sociedade. Está na hora do jornalismo de guerra dar um passo atrás, sob pena da guerra sair do controle.

Se o incêndio do Museu Nacional simboliza a imolação da cultura, da ciência e da educação (nele funcionava sete cursos de pós-graduação), por uma elite descompromissada com o futuro do país e com o fortalecimento da vida nacional, uma elite voltada para seu umbigo e seus interesses predatórios (o desastre em Mariana é outro símbolo da irresponsabilidade com a sociedade e com o país daqueles que só enxergam seu enriquecimento e seu poder privado), a facada em um dos candidatos líderes nas pesquisas de intenção de voto, como uma consequência de sua própria retórica beligerante e de estímulo à violência, simboliza a imolação da vida democrática, da vida pública e republicana, onde as desavenças e dissensões se resolvem através do debate, do diálogo e do voto. A criminalização sistemática da política, notadamente das forças de esquerda, levada a efeito pela mídia e pelas redes sociais (que será realimentada com esse episódio) coloca nossa democracia à beira do colapso tragada pelas forças antidemocráticas, autoritárias, violentas, pelas injustiças da justiça, pela caráter seletivo das decisões do Ministério Público e dos órgão policiais. Vivemos como num assustador pesadelo, no qual o passado se incendeia e desaparece tornado cinzas e o presente se enche de sangue, vísceras cortadas, pregações de ódio e delírios com o comunismo, a Ursal, o bolivarianismo, embora em todo lugar se leia que “Deus é fiel”. Imagine se não fosse! Me sacudam, eu preciso acordar!

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