Feminismo e antiproibicionismo
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Feminismo e antiproibicionismo

12 de outubro de 2017
Feminismo e antiproibicionismo

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Entre os dias 30 de setembro e 1º de outubro, em Recife, criou-se um marco para o movimento feminista brasileiro com a realização do primeiro Encontro Nacional de Feministas Antiproibicionistas, e queria aproveitar o espaço para cumprimentar minhas caras Ana Maria Carneiro, Ingrid Farias e Priscilla Gadelha pela maravilhosa organização. Duas temáticas que, só pelo título, já despertam ojeriza em muita gente, mesmo entre mulheres.

O feminismo é um conceito tão sofredor quanto as mulheres que ele busca definir. As campanhas dos machistas de plantão em produzir memes, editando, de maneira tendenciosa, várias posições cruciais para a luta feminista, aliadas a toda a desqualificação a priori relativa a toda e qualquer menção à legalização das drogas, tem produzido imagens esteriotipadas, bastante rasteiras, mas que colam fácil, bem fácil, numa sociedade que se informa predominantemente a partir de blogs e sites muitas vezes sensacionalistas, para não dizer corruptores do ideal da boa informação livre. De modo que, a conhecida máxima de Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher, se torna mulher”, por exemplo, foi objeto das mais grosseiras e esdrúxulas apropriações, demonstrando o poder de deformação da informação, quando tirada de maneira recortada de seu contexto.

É evidente que Beuvoir não ignora as realidades biológicas, anatômicas, do nascimento das pessoas. Nesse sentido, claro que se nasce mulher, ou homem. No entanto, o que a autora visa chamar atenção, é que o conjunto de coerções e definições que definem o que é ser mulher ou homem na nossa sociedade não se define somente pelo mero ato de “nascer assim ou assado”, e sim, o que define, em ultima instancia, as performances de gênero das pessoas, é muito mais o conjunto de coerções sócio-comportamentais sociais do que propriamente o presente (de grego, às vezes) que a biologia nos concede por ocasião da nossa vinda ao mundo.

Poderíamos, de maneira bastante genérica, inferir alguns momentos mais potentes que outros na historia da luta feminista. Sem dúvida, na origem, em fins do século 19, o movimento das sufragistas é um primeiro momento de muita potencia. Não só por ser o primeiro momento, mas acima de tudo por ser aquele que subverte a lógica clássica do machismo em relação às mulheres: a de que a vida pública, política, não lhes pertencia.

A queima dos sutiãs nos anos 60 do século passado, na busca pela prerrogativa, parcialmente conquistada, dos direitos sobre o processo reprodutivo são o segundo momento. Diferentemente da condição masculina, onde a paternidade não é experienciada como algo visceral, corporal, é justamente isso que acontece com as mulheres. Nelas, o processo reprodutivo acontece como extensão de seu próprio corpo, daí a legitima reivindicação da máxima feminista: “meu corpo, minhas regras”. Ou seja, se serão as mulheres que terão que arcar com ônus do processo reprodutivo da espécie humana em seu próprio corpo, nada mais justo e correto que elas definam se querem, e quantos filhos querem ter. O direito ao uso do anticoncepcional e das camisinhas, foi também uma grande vitoria do movimento feminista, que apesar disso, jamais conseguiu, no Brasil, a aprovação do aborto. Claro, estamos num país onde 90% dos representantes no congresso são homens, e são eles que fazem as leis. Mas vocês têm alguma duvida de que, se homens pudessem engravidar, o aborto já seria legal?

O argumento de ser a favor da vida, na boca de quem é contra a legalização do aborto, é ingênuo quando pensamos que exista sinceridade nos formuladores, ou mesmo hipócrita, quando observamos que as mesmas pessoas a favor da vida do feto (a falta de consenso cientifico absoluto sobre quando começa a vida do feto é um problema, mas em geral assume-se que antes do terceiro mês não há “vida inteligente” a ser protegida ainda) são aquelas que parecem não estar a favor da vida da mãe. Sim, por que pra ser a favor da vida de quem não nasceu ainda precisamos ser a favor da vida de quem vai cuidar de quem ainda não nasceu. Então, assim galera “pró-vida”, vamos criar as condições para que nossas mulheres, nossas mães, possam criar seus filhos com dignidade e vamos apoiá-las quando, por falta de condições psíquicas ou materiais, não se sentem aptas a continuar. A decisão final deve ser sempre da mulher, não da sociedade, é o corpo dela, são as regras dela.

Atualmente, talvez passemos pelo terceiro momento mais potente da historia do feminismo brasileiro, que apesar de acompanhar a evolução da pauta feminista mundial, tem se estabelecido, de acordo com os encaminhamentos de Recife, numa pegada antiproibicionista, que entende que a vida das mulheres pobres brasileiras passa hoje, sem duvida, pelo fim da dita”Guerra as drogas”.

Primeiro que não existe guerra às drogas. Existe guerra contra pessoas, que usam comerciam, de alguma maneira, essas substancias. Mas acima de tudo, o que vem sendo amplamente demonstrando pela literatura cientifica do tema é que a guerra às drogas é, na verdade, uma cortina de fumaça – para parafrasear meu caro Rodrigo Macniven – a partir da qual a mídia enfoca a superfície do problema, sensacionalizando alguns usos problemáticos como paradigma de um uso negativo que não é majoritário (apenas 10% das pessoas que usam drogas no mundo são consideradas usuários problemáticos) e passando ao largo do real interesse da dita guerra às drogas: a criminalização de amplos setores considerados indesejáveis na nossa sociedade machista, racista, lgbtofobica. Essencialmente, é a população pobre a mais dizimada por essa “guerra”. E em sua maioria os pobres do nosso país são negros, sejam eles mulheres ou LGBTS.

De acordo com os debates levados por nós, mulheres (Cis e trans – pois o feminismo antiproibicionista não é vaginocentrico), no I Encontro Nacional de Feministas Antiprobicionistas, mais de 70% do encarceramento feminino é motivado por questões relativas às drogas. Já é muito ruim quando os homens são aprisionados arbitrariamente, por causa de um baseado ou uma pedra de crack – no mesmo país que libera filho de desembargadora com mais de cem quilos, além de armas em casa, no mesmo país de Zezé Perrela e seus quinhentos quilos de cocaína no helicóptero. Mas é muito pior quando as mulheres são presas nas mesmas circunstâncias. Aí, temos uma tragédia social, pois muitas vezes o núcleo familiar se desfaz ali. A mãe presa, muitas vezes não tem a quem recorrer pra cuidar de seus filhos, que podem, facilmente, passar a viver em situação de rua e ficarem sujeitos a cooptação financeira do tráfico, muitas vezes a única maneira de se sustentar encontrada por esses jovens sem oportunidade de famílias esfaceladas.

Dizer que alguém é ligado às drogas, tornou-se uma licença para se eliminar essas pessoa. Matar tais indivíduos, aparece agora como um bônus e não um ônus para a sociedade, pois vende-se a imagem que se matou um bandido. “Bandido bom é bandido morto” desde que não use terno e gravata e não seja dono de helicóptero.

As travestis que estão na rua, buscando o sustento na prostituição, já que não conseguem emprego formal por causa do preconceito – são mortas muitas vezes por absoluta transfobia. Mas aí, forja-se algum “flagrante” coloca-se uma pedra de crack ou um “toca” de cocaína ao lado dela e se diz: “morreu por dívida de droga”. Aí, ninguém vai se indignar com aquela morte. Vão dizer que “ela procurou aquilo” ao se envolver com o mundo das drogas. Mesmo que fosse verdade, mesmo que tais pessoas tenham se envolvido com drogas em algum momento de suas vidas, fico me perguntando qual o nível de humanidade de uma sociedade que acha aceitável matar pessoas só porque elas tiveram uma escolha de vida, de vivenciar e provar substancias, diferentes das consumidas pela maioria. Afinal, todo mundo se droga com as substâncias legais, o café, o açúcar, o álcool e os remédios e, ao mesmo tempo, condena quem fuma um baseado, da um “teco” ou uma “latada”. Esse debate hipócrita precisa urgentemente, abandonar o campo moral e ingressar no campo dos direitos humanos.

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