O cativeiro babilônico
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O cativeiro babilônico

2 de junho de 2018
O cativeiro babilônico

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Encontrei-me com João num lugar inusitado: no cinema do Shopping. Ele tinha ido assistir ao filme “Paulo, Apóstolo de Cristo[2], ao qual eu também tinha visto e achado muito bom. Felizmente tivemos um tempinho para uma conversa muito proveitosa. Ele, como eu, estávamos impactados com o filme, pois para nós que convivemos com os escritos paulinos por décadas, não conseguimos encarar um filme desses como uma ficção.

– O que mais me chocou nesse filme, começou João a dizer, foi a diferença entre o poder destruidor do imperador Nero, que para escapar da revolta popular, resolve acusar os cristãos de terem incendiado Roma. É sempre assim: um governante fere, destrói, e põe a culpa em quem está querendo melhorar a situação.

– Parece com os dias que estamos vivendo, comentei. Em 2015, o governador do Paraná Carlos Alberto Richa (PSDB) mandou a polícia descer o cassetete nos professores que se manifestavam por melhores condições de trabalho, e quando Curitiba começo a pegar fogo de indignação, ele disse que o culpado daquilo era o PT.

– Olha, Prof., reagiu João, você sabe que eu não sou fã do PT, mas que a situação é parecida é. Mas o que me deixou com raiva mesmo, quase que com vontade de gritar no cinema é o seguinte: como podem líderes evangélicos serem simpáticos ao Bolsonaro, um homem que está do lado de Nero? Um homem que quer tornar a morte das pessoas um espetáculo!

– Mas a sua igreja trouxe semana passada o Henrique Meireles para as comemorações de seu centenário. O candidato do MDB do Temer, o responsável por essa política econômica desastrosa do país… Que horror! Como é que pode?

– Mas pelo menos não foi o Bolsonaro.

Tive que concordar, sorrindo, mas não resisti, e continuei provocando o veio profético de João:

– O que os imperadores Romanos dos dois primeiros séculos fizeram contra os cristãos foi abominável sob todos os aspectos, mas os cristãos, depois que obtiveram sucesso, conquistando até o imperador Constantino para o evangelho, foram progressivamente se tornando iguais a Nero. Eles não mandavam dilacerar mulheres e crianças nas arenas das feras, nem queimavam infiéis pendurados em postes, mas apoiaram os governantes seculares na matança de infiéis. Eles não sujavam suas mãos de sangue, mas soltavam seus cães, tipo Bolsonaro e Magno Malta, para ir estraçalhando aqueles e aquelas que não se enquadravam nos seus padrões, ou que se recusavam a se converter.

– Uma correçãozinha aqui, prof., a igreja que trouxe o Henrique Meireles não é de minha denominação. Os nomes de nossas igrejas são iguais, mas eu não faço parte da mesma estrutura. Minha igreja só tem a minha em Felipe Camarão. É uma denominação de uma igreja só. O problema dessas igrejas que paparicam o governo federal é que cresceram demais. Ficaram iguais àquela que você falava que tinha até um imperador como membro.

– Será, João, que toda instituição está destinada a se tornar um instrumento de opressão? Sua denominação, por exemplo, que só tem uma igreja, um dia pode se tornar uma mega denominação, com milhões de membros… será que então ela também vai se tornar numa máquina de opressão?

– Pode ter certeza de uma coisa, prof., se minha igreja começar a crescer muito eu caio fora.

– Duvido muito que você vai ser um desviado[3]. Sabe o que eu acho, João? Se você sai, e alguns concordam com sua indignação, e se juntam a você, daqui a pouco tem outra igreja no mercado, isto é, outra instituição. Parece-me inevitável.

– Não sei, mas que eu não fico, pode ter certeza. E se a nova igreja começar a crescer também, eu saio de novo.

– Acho que você tem razão. Essa multiplicação infinita de novas igrejas ou denominações talvez seja uma forma de resistência e de luta contra o poder das instituições. Imagine se as 101 igrejas evangélicas que encontramos em nossa pesquisa no ano passado em Felipe Camarão fossem da mesma denominação! Imagine se houvesse uma única instituição, sem dissidência, sem oposição… Teríamos uma megaestrutura que passaria por cima de tudo e de todos como um rolo compressor.

Quando eu e o pesquisador da UFRN que está me ajudando na pesquisa em Felipe Camarão tentamos distribuir as igrejas em conjuntos denominacionais (mesma estrutura), quase enlouquecemos. Das 101 igrejas, 17 eram da Assembleia de Deus, digamos assim “oficial”, isto é, a do Rio Grande do Norte e que completou os tais 100 anos este ano. Mas existem pelo menos umas oito outras Assembleias de Deus não integradas à estrutura oficial do Estado. Essas surgiram principalmente nos últimos cinco anos, o que prova que a megaestrutura tende a produzir dissidências. A grande maioria das igrejas evangélicas em Felipe Camarão são miniestruturas de poucas congregações, como é o caso da igreja de João.

– Tá vendo, reagiu João às minhas informações, quanto mais poderosa uma instituição, mais ela fica conservadora.

– Nem sempre, reagi. A maior igreja no Brasil é a Católica Romana, e ela tem tido uma atitude bem combativa contra o golpe de 2016.

– Ahhh, mas a Igreja Católica Romana já tá no poder há tanto tempo que nem faz tanta questão de ficar paparicando os governantes.

– Tudo bem, mas só estou citando o caso para dizer que não é só o tamanho da estrutura que produz o conservadorismo. Acho que esse é um problema mais complexo. Para mim, a grande maioria dos evangélicos no Brasil está num “cativeiro babilônico”.

– Como assim?! (João me olhou atravessado).

– O Novo Testamento faz uma crítica pesada contra a “Babilônia”, isto é, o poder imperialista de Roma. Você viu bem retratada no filme do apóstolo Paulo a desgraça que era o Império Romano. Só que esse poder nunca para de se manifestar. Quando o império caiu, ele foi atrás da igreja. Esse poder é como uma prisão da mente. Quando a igreja evangélica, tão entusiasmada com o sucesso como está hoje, se arrepender e voltar ao caminho da opção preferencial pelos mais pobres, ela vai ser uma força de transformação incrível neste país.

– No que depender de mim, vamos lá. Mas olha, prof., eu acho que já está acontecendo alguma conversão. Eu soube que o fascista do Bolsonaro foi vaiado na marcha para Jesus.

– Mas, pelo que eu sei, houve aplausos também. Se não for feito um trabalho de base, mostrando ao povo o que está acontecendo no Brasil, nós só vamos de mal a pior. Por isso, João, não desista de sua igreja. Continue sua tarefa profética de denunciar o poder, a ambição e a ilusão de sucesso que prendem a mente das pessoas. Mostre a força do cupim que vai corroendo por baixo as megaestruturas do poder. De certa maneira, César sabia bem o que estava fazendo ao mandar queimar e trucidar os cristãos: a fraqueza deles estava roendo por baixo o grande poder de Babilônia. Que os cristãos rejeitem essa sedução do sucesso, do poder, e da riqueza para que sejam novamente essa força não institucional de transformação neste país.

[2] Paul, Apostle of Christ – Direção de Andrew Hyatt, com a participação de James Faulkner e Jim Caviezel.

[3] Essa é a forma como os pentecostais se referem aos que deixam a igreja.

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