“Perdemos a dimensão de futuro, não temos projeto, perdemos a utopia”
Natal, RN 28 de mar 2024

“Perdemos a dimensão de futuro, não temos projeto, perdemos a utopia”

29 de outubro de 2017
1min
“Perdemos a dimensão de futuro, não temos projeto, perdemos a utopia”

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O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior é uma referência nacional na área de identidade, gênero e subjetividades. Professor do curso de História da UFRN, conhece o Nordeste como poucos. Aliás, descobriu que a região localizada entre o Norte e o Leste do mapa é, na verdade, uma invenção da elite agrária brasileira.

Desse achado, nasceu um de seus sete livros já publicados: A Invenção do Nordeste e Outras Artes, que ganhou os palcos em 2017 em texto adaptado pelo filósofo Pablo Capistrano em parceria com ator e diretor Henrique Fontes, do grupo Carmim de Teatro.

Colunista da agência Saiba Mais, Durval Muniz escreve aos domingos sobre cidadania. Nesta entrevista, o historiador fala sobre as origens da região Nordeste, a seca como arma das elites, as subjetividades atacadas pelo capitalismo e sobre o avanço do conservadorismo no Brasil.

Agência Saiba Mais: Ficou satisfeito com a adaptação de A Invenção do Nordeste e Outras Artes para o teatro?

Durval Muniz: Fiquei muito emocionado, eu estava na noite de estreia, foi um momento de grande felicidade. Você ver seu trabalho inspirar outra obra, que é um texto do Pablo Capistrano e do Henrique Fontes inspirado no livro, mas é uma obra com conteúdo próprio... isso é muito importante. Na Invenção do Nordeste, a última frase do livro é uma aposta de que as artes seriam um dos únicos caminhos para reformular esse imaginário em torno do Nordeste e é por isso que o nome do livro se chama A Invenção do Nordeste e Outras Artes, porque a ideia é que as artes foram fundamentais na construção desse imaginário e serão fundamentais na substituição desse imaginário também.

E fiquei mais feliz ainda de ver o livro saindo dos muros da universidade, ultrapassando a academia e inspirando uma peça teatral, já inspirou filmes, fotografia. O Fred Jordão, fotógrafo pernambucano, fez um livro chamado Sertão Verde e, na introdução, ele diz que é uma inspiração de A Invenção do Nordeste. O livro está alcançando seu objetivo, que é de provocar questionamentos desse conjunto de imagens do Nordeste e a construção de outras imagens que tem muita efetividade quando vem das artes.

O senhor defende no livro que o Nordeste é uma invenção das nossas elites, por quê?

Esse livro nasceu de uma pesquisa anterior, do meu mestrado, onde pesquiso a construção da seca como problema regional. Ao consultar documentação do século 19 e do século 20, percebi que o conceito Nordeste não aparecia, não existia esse recorte Nordeste. A divisão era entre o Sul e o Norte. Isso só começa a aparecer no final da década de 10, mais particularmente a partir da criação da inspetoria federal de obras contra a seca, quando no documento de fundação da inspetoria se define a área da atuação e dá o nome dessa área de Nordeste. E, logo no começo dos anos 20, Gilberto Freyre encabeça no Recife um movimento e cria o centro regionalista do Nordeste. A partir daí, passa a dar a esse conceito um conteúdo que ele não tinha. O Nordeste, inicialmente, era apenas um ponto colateral, uma área localizada entre o norte e o leste, quer dizer, Gilberto Freyre e os políticos, artistas que giram em torno dele, começam a dar a esse conceito um conteúdo político, estético, simbólico, cultural.

A partir de quando esse novo conceito, produzido pelas elites, se populariza?

Percebi que no cordel, por exemplo, esse conceito de Nordeste só vai aparecer no final dos anos 30, quer dizer, vai levar um tempo para que esse conceito saia do interior da produção das elites e chegue às produções nas camadas populares. Antes disso, os recortes espaciais do cordel são o sertão, o brejo, o agreste, a praia... são outras divisões espaciais. Então é muito claro que é uma construção feita pelas elites, notadamente ligadas ao processo agrário que está em declínio econômico e político.

Então, o Nordeste é uma espécie de trincheira de defesa de interesses que estão ameaçados pelo processo de expansão do capitalismo, pelo processo de implantação da industrialização no país, pelo processo da implantação da República, o fim da escravidão, do Império, com a emergência da sociedade de classe no Brasil, com a emergência da classe trabalhadora, com a emergência das classes médias urbanas... uma série de transformações que faz com que essa elite perca poder político e econômico. Porque enquanto essas elites dominaram o espaço nacional, o Nordeste não existia. Esse novo conceito surge no momento em que elas deixam de dominar o espaço nacional, perdem o domínio para as elites do centro-sul, ligadas ao café, à indústria... e ela se recolhe a um espaço que é o da região, ou seja, criam uma região como trincheira em defesa dos seus interesses.

E quem passa a gerar dinheiro, a partir de então, é a seca?

A seca vai surgir antes do Nordeste como arma política. O Nordeste, em grande medida, é produto do discurso da seca, que é articulado com o regionalismo nortista. Ao invés da região gerar o regionalismo é o regionalismo que produz a região. O regionalismo nortista se insinua no final da década de 1870, na chamada grande seca de 79, quando o Império realiza o congresso regionalista para discutir a questão da mão de obra, a transformação da escravidão para as culturas cafeeiras e só convida as províncias cafeeiras. Então é realizado o congresso na Corte, no Rio, e as elites do Norte realizam um congresso de resposta, no Recife, onde vai emergir um forte discurso de contraposição ao centro, ao Império, à Corte. E vai se insinuar o discurso regionalista porque estamos diante de uma seca que é uma das primeiras a atingir as elites. Porque enquanto a seca matou pobres e escravos não era um problema. A seca só se torna problema quando atinge setores das elites empobrecidas nesse momento pela crise do algodão, do açúcar, pelo fato das províncias empobrecidas não conseguirem dar emprego e sinecura, como faziam nas secas anteriores, a todas as elites, quer dizer, as elites migravam para o litoral e eram socorridas pelo poder público e as populações pobres eram abandonadas no sertão para se virar, morrer, migrar ou procurar as áreas úmidas. A seca de 1879 funda o discurso da seca porque se descobre a seca como arma.

Foto: Vlademir Alexandre (Agência Saiba Mais)

E naquele tempo uma seca no Norte repercutia nacionalmente, chegava na Corte, no sul? 

Chegou pela imprensa. Foi quando José do Patrocínio veio para o Ceará para cobrir a seca pelo Diário de Notícias, do Rio, e fez reportagens sequenciadas sobre a seca. Ele trouxe um fotógrafo que faz fotos históricas, de corpos esqueléticos, de corpos só pele e osso. E essas fotos causam grande impacto. A partir daí, o país descobre a seca. E o que chamavam seca do Ceará passa a ser seca do Norte. E neste momento as elites descobrem que a seca tem potência de reivindicação e passam a usar a seca politicamente, a usar a seca para conseguir recursos, obras, ou seja, nasce aí a chamada indústria da seca.

Uma invenção dos inventores do Nordeste.

Os inventores do Nordeste são os mesmos que vão se beneficiar do discurso da seca. O Nordeste tem dois temas fundamentais na sua constituição: a ideia de que é um espaço natural e a seca é fundamental, quer dizer, a ideia da naturalização da própria região. A região está nascendo e já é naturalizada; e o outro elemento é que o Nordeste tem uma forma cultural própria, de ser motivada pelo fato de que aqui não houve migração estrangeira. A ideia de que os imigrantes não impactaram culturalmente essa região e essa região teria se mantido distante das mudanças culturais trazidas pelos imigrantes. Que aqui predominava a cultura influenciada pela cultura ibérica e sua miscigenação com a cultura africana e indígena. Então, no Nordeste seria a cultura de raiz do país, a cultura propriamente brasileira. O Nordeste é pensado como uma região natural e uma região cultural, ou seja, duas coisas fundamentais para diferenciar o Nordeste do restante do país, inclusive do Norte, porque até então o espaço era o norte. Então as elites tiveram que nos diferenciar da Amazônia, então primeiro tiveram que diferenciar a natureza, era uma grande diferença porque a Amazônia tinha outro clima, com florestas, águas, e depois uma diferenciação cultural porque a Amazônia teria a presença indígena, cabocla e aqui (o Nordeste) teria muito mais a presença africana, que é a tese que dá fundamento a toda a sociologia Freyreana, a ideia da sociologia das três raças, que não é dele, vem desde o século 19, quando o Instituto Histórico e Geográfico faz um concurso e pergunta como se deve escrever a história do Brasil. Estranhamente um naturalista alemão que tinha passado pelo Brasil ganha o concurso e diz que a história do brasil deveria ser escrita a partir do encontro das três raças, pela contribuição que cada raça teria dado à civilização brasileira.

Se não houvesse o Nordeste, a partir desse recorte das elites, daria para imaginar como seria o Brasil hoje dividido entre Norte e sul?

(risos) Historiador não faz exercício de futurologia porque se volta para o passado, embora todo passado e todo presente tenham possibilidade de futuro. Mas o surgimento do Nordeste tem a ver com a característica das elites brasileiras e, em especial, da nordestina, que é o medo da mudança, o medo da transformação, por isso se agarra à territórios tradicionais, porque tem medo da história. O Nordeste é uma produção reacionária, é uma tentativa de barrar a história, uma tentativa de criar uma barreira às transformações do capitalismo. Porque o capitalismo não muda só a economia e esse é um dos equívocos do marxismo, achar que o capitalismo é só um modo de produção de mercadorias. O capitalismo é um modo de produção de subjetividades, de formas de pensar, de sentir, de sensibilidades, e tem caraterística, como o próprio Marx disse, de ser o único modo de produção que se revoluciona permanentemente. Então ele muda as regras o tempo todo, se transforma todo o tempo. O capitalismo gera insegurança porque destrói os territórios tradicionais no sentido em que você habita. O capitalismo gera um processo de desterritorialização não apenas nas migrações, mas é que quando você migra, você não perde só a terra, você perde o território, onde há memórias, afetos, costumes, e isso tudo você perde.

Há um processo de desterritorialização no Brasil de hoje?

Hoje no Brasil estamos vivendo um momento de total insegurança, não sabemos o que vai ser o amanhã, o futuro, isso gera muita insegurança e faz com que as pessoas se agarrem naquilo que têm, e passem a ser mais conservadoras, tenham mais medo da mudança, da transformação, grudem mais em territórios, sobretudo existenciais. A gente precisa de território pra existir, precisamos de algum lugar para habitar. E as pessoas têm medo de afrontar o novo. Regredimos para uma situação de apego. O Nordeste nasceu desse processo de destruição de territórios tradicionais. Por exemplo, quando José Lins do Rêgo fala do engenho, o engenho não é apenas uma fábrica ou um complexo econômico, o engenho é uma forma de vida, um universo social que o capitalismo destrói. A usina vem e destrói lugares de sujeito, modos de vida, de comportamento, formas de arte, cultura, várias formas de vida. O que Gilberto Freyre e José Lins narram no ciclo da cana é esse processo de destruição de território, que é o engenho. Doidinho, quando sai do engenho e vai para a cidade estudar, descobre que o mundo tem fronteiras, que o engenho do avô não é um mundo todo, mas que existe um mundo com códigos, regras, então ele já sofre processo de perda de território. Ele perde esse universo encantado do engenho. Um processo que segue até chegar em Fogo Morto, que é um livro sobre processo de perda total do seu território, personagens masculinos que não reconhecem mais nem no que a masculinidade está se transformando nesse momento. Porque esse momento é o primeira grande vaga feminista no ocidente... então a identidade masculina está sendo questionada pela primeira vez. O personagem Papa rabo, por exemplo, é xingado pelos meninos e tem conotação erótica e homoafetiva clara. Papa rabo era um coronel impotente sustentado pela mulher. E veja que a mulher o sustentava vendendo ovo. Então quem tinha os ovos era a mulher, não ele. Então é toda uma simbologia que José Lins usa para falar disso. No final de Fogo Morto, o bueiro do engenho, que é um símbolo fálico, gera uma flor lilás, ou seja, um desenho feminino. E ele está de fogo morto. E nós sabemos que fogo morto também é uma expressão de conotação erótica, então o declínio do engenho é um declínio de tudo isso. O engenho não é só maquinaria econômica que entra em declínio. É todo um modo de vida, de subjetividades que se tornam obsoletas. O papa rabo é uma subjetividade obsoleta, como Zé Amaro, um artesão que vive do couro e não dá mais no couro, ou seja, outra dimensão erótica. O Nordeste é isso e teve a sorte de contar com intelectuais de enorme talento que conseguiram construir um imaginário extremamente rico e forte. E isso é muito difícil de se contestar porque contamos com pessoas da qualidade de José Lins, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, Gilberto Freyre, pessoas com uma enorme capacidade de criação de imagem.

Você citou que a indústria da seca nasce ainda no século 19, antes mesmo da invenção do Nordeste. Não lhe parece muito atrasado, tanto tempo depois, a gente falar em tom de novidade da transposição do rio São Francisco como a grande obra da região?

No Nordeste há muita falácia. A transposição é simplesmente uma obra necessária porque a maior parte da população do Nordeste vive em cidades, grandes cidades que iam entrar em colapso de abastecimento. Senão transpusesse o São Francisco teria que transpor o rio Tocantins, ou qualquer outra coisa. Transposição de rio não é uma coisa de Brasil, outros países também fizeram. Estados Unidos, Espanha... a transposição teria que acontecer. A região de Juazeiro, Barbalha e Crato soma 1 milhão de habitantes. Você não abastece 1 milhão de pessoas com caminhão pipa.

Mas eu não discuto nem o fato de ter que fazer. É o fato de um projeto como esse, importante como esse, se arrastar do Império até hoje.

Mas é porque não havia interesse político da nossa elite em resolver. Nunca houve interesse na transposição, quer dizer, o governo Lula mostra que se você tem interesse político a obra sai, mesmo sendo muito cara. E veja que ela sofreu muitas oposições à direita e à esquerda. A obra sofreu muitas críticas, algumas com razões, outras não. Os governos da Bahia, de Alagoas e de Sergipe descobriram que a transposição passava nesses estados quando as populações à beira do São Francisco em Alagoas não tinham sequer abastecimento de água. Haviam 40 cidades em Alagoas, próximo ao rio São Francisco, sem abastecimento d’água e o governo de Alagoas nunca se lembrou de levar o rio até essas 40 cidades. Da mesma forma que as pessoas morriam de sede, à beira do São Francisco, na Bahia e em Sergipe. Ou seja, descobriram que tinha o São Francisco quando ficaram com medo que houvesse um processo de esvaziamento do rio, enquanto ele era mal cuidado por essas gestões, com esgotos sendo jogados dentro do rio, as matas ciliares destruídas, sendo assoreado muito antes da transposição. Então, a transposição teve o mérito de levantar todas essas questões.

Sem falar que a transposição sempre foi vendida como a solução definitiva da seca.

É a falácia de que eu falava. A transposição não vai irrigar o sertão, não tem água para irrigar o sertão... a transposição do rio São Francisco é para abastecer as grandes cidades do interior do Nordeste. Até Fortaleza corre sérios riscos de colapso no abastecimento de água. Mossoró, Campina Grande, Juazeiro, Petrolina, Caicó... quer dizer, Campina Grande foi salva pela transposição. Íamos ficar com uma cidade de 500 mil habitantes abastecidos com carro pipa. Você imagina o gasto, a quantidade de caminhões, de motoristas, de diárias que precisariam para abastecer uma cidade dessa, era economicamente inviável. Então a transposição é por causa disso, o resto é falácia.

O governo Lula é o primeiro governo que vai dizer, pela primeira vez, que não se acaba com a seca, porque isso é uma falácia que vem desde o século 19. O discurso de “vamos solucionar a seca” é igual a dizer que “vamos solucionar o gelo na Dinamarca e na Noruega” que faz com que a Noruega passe quase seis meses sem sol. Seca não se soluciona, se convive com ela. Se desenvolve tecnologias, formas de vida que conviva com ela.

Qual foi o papel da igreja na invenção do Nordeste?

O Nordeste surge num momento de afastamento entre a igreja e o Estado. A primeira república é um dos poucos momentos de crise nessa relação entre igreja e Estado no Brasil. A implantação da República representa o fim da igreja oficial, porque no império o catolicismo era a religião oficial no Brasil, o imperador era uma autoridade no interior da igreja. Na primeira República, há uma certa tensão entre esse estado laico, republicano e a igreja. Claro que intelectuais ligados à igreja tiveram participação importante porque a igreja sempre foi formadora de grande parte desses intelectuais. As escolas católicas, os centros católicos sempre foram formadores da elite nordestina. Quando escrevi o livro A Feira dos Mitos sobre os folcloristas e o papel que os folcloristas tiveram na criação dessa ideia, e do papel da cultura nordestina, fiz um cruzamento da vida desses folcloristas. E percebi que a maioria deles passaram por colégios católicos, então a igreja católica forma a subjetividade dessas pessoas, e o fato das subjetividades serem reativas ao mundo moderno tem muito a ver com isso. Porque o catolicismo sempre teve uma relação difícil com o mundo moderno, com o capitalismo, com a sociedade republicana, com a sociedade pós-revolução francesa. Grande parte dos movimentos de direita teve o apoio da igreja católica. A igreja apoiou o nazismo, o fascismo, o integralismo em Portugal e no Brasil... a igreja católica foi formadora de sensibilidades e subjetividades reativas ao mundo moderno. Gilberto Freyre, por exemplo, é importante na invenção do nordeste e grande leitor de intelectuais católicos conservadores europeus.

Luís da Câmara Cascudo era ligado à igreja católica e se assumiu como integralista...

Câmara Cascudo é um intelectual que se diz católico, próximo ao Centro Dom Vital, que é um centro de reação conservadora católica que publica o jornal e a revista A Ordem, integralista. Ariano Suassuna era um intelectual católico e vai dizer na sua obra A Pedra do Reino que as duas forças que representam o povo no Brasil é o exército e a igreja, num livro escrito em 1970, em plena na ditadura militar... e anos depois Ariano aparece como um homem de esquerda, socialista... só para quem não conhece a história dele.

O próprio movimento armorial é uma volta à tradição...

Quando Paulo Freire cai em desgraça e é exilado quem ocupa o lugar dele é Ariano Suassuna, que utiliza o suporte da universidade para lançar seu movimento armorial. Ou seja, o movimento armorial tem como suporte a universidade para onde Ariano vai justamente para se contrapor a Paulo Freire. Então, o lançamento do movimento armorial se dá dentro da igreja de São Pedro dos Clérigos, bem no centro de Recife. Quem conhece o pátio de São Pedro, onde se realiza o encontro dos tambores silenciosos... foi dentro daquela igreja que Ariano lançou o movimento armorial como gesto simbólico de contraposição ao ruído urbano que estava em volta da igreja. Então o movimento armorial era uma contraposição à paisagem sonora moderna da cidade, era um retorno à paisagem pretensamente ibérica, medieval, que seria a paisagem sonora medieval do nordeste. O Nordeste de Ariano era medieval onde reina um príncipe que era o pai dele. O sertão, o rei degolado nas catingas do sertão é João Suassuna, que foi morto por causa da sua participação nos episódios de 30.

Foto: Vlademir Alexandre (Agência Saiba Mais)

Como explicar hoje essa onda de episódios fascistas no Brasil?

É que o Brasil ainda não superou a saudade da escravidão. Nossas elites são em grande medida ainda senhoriais, elas tem veleidades senhoriais, aristocráticas. Basta ver a quantidade de castelos que se constroem no nordeste. De vez em quando, alguém constrói um castelo. Vá ver o castelo de Ricardo Brenandt atrás da Universidade Federal de Pernambuco. Em Caicó, tem um castelo que começou a ser construído por um padre e ainda está lá. Em Campina Grande, também tem um, que foi transformado numa casa. Somos uma região com grande imaginário ainda monárquico. Inclusive, as manifestações culturais populares que vão fazer parte da cultura nordestina morrem de saudade de rei, rainha, todos tem um príncipe, uma princesa, somos ainda uma sociedade onde a República tem muito pouca popularidade e recepção. Até porque, nossa República foi implantada numa quartelada, sem participação popular. Foi o primeiro golpe militar que tivemos, a proclamação da República. Nossas elites ainda são muito identificadas, quer dizer, essa legislação trabalhista que acabou de ser aprovada, o que está prometido para o campo é que, basicamente, os fazendeiros vão poder pagar o trabalho com comida e casa, isso é quase o retorno à escravidão. E a gente sabe, se você fechou os olhos, o trabalho análogo ao de escravo no Brasil, acontece. Os fazendeiros escravizam as pessoas. Os donos de grandes lojas de shopping centers escravizam também bolivianos para produzir seus tecidos.

O reacionarismo das nossas elites é histórico. Um colega meu, João José Reis, ganhou agora o prêmio Machado de Assis, e ele é um especialista nos estudos de escravidão do Brasil e no discurso mostrou a relação da escravidão com a estrutura das relações sociais que ainda não morreram. O racismo, o lugar que os negros ocupam na sociedade, o fato de 70% da população carcerária ser negra, a juventude negra sendo assassinada impunemente pela polícia todos os dias, as mulheres negras como a carne mais barata do mercado... então isso tudo ainda é uma consequência direta da escravidão. E o que você vai encontrar nos discursos que criam o nordeste é a nostalgia da escravidão, é a nostalgia do escravo. Esta lá em Gilberto Freyre, em José Lins... a saudade do escravo doméstico, da ama, da mucama, até em Jorge Amado, que é o nosso escritor comunista, há saudade da mucama, do cafuné, do banho na rede, da cozinheira, da serviçal.

Você vem de uma família conservadora tradicional da Paraíba, milita na juventude católica e no movimento estudantil durante a ditadura militar. Como é que isso deságua no historiador Durval Muniz?

Sou de uma família muito católica, fui membro de grupos de jovens, fiz parte da pastoral da juventude. Tenho a capacidade de entrar em todas instituições e sair delas. Meu primeiro conflito com minha família é quando entro na universidade e leio um livro chamado A Ilha, de Fernando Moraes, que é emprestado por minha professora de história, a Marta Lúcia Araújo. Foi com ela que eu descobri a história. Devo a ela, e a uma professora de sociologia. É por isso os conservadores da Escola sem Partido não querem as humanidades na escola, é porque elas tem capacidade de produzir outras subjetividades. Minha mãe me via lendo o livro encapado com papel pardo porque ainda era um perigo ler aquilo. E quando minha mãe viu o que era, ficou escandalizada, disse que era um perigo, foi minha primeira briga ideológica.

Eu descubro o marxismo na universidade e fiz um curso de inspiração marxista mesmo sem ler Marx porque ainda não era traduzido. Minhas professoras, algumas bastante conservadoras, me davam livros para ler que tinham Marx como inspiração. Lembro que minha professora de história do Brasil I era bastante conservadora, mas a base do curso foi Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Jr., que são dois autores marxistas, talvez porque ela entendesse pouco de teoria da história e não soubesse que aqueles dois livros eram inspirados no materialismo histórico. Também li muito sociologia e economia, a escola sociologia paulista, então li Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Maria Sílvia Carvalho Franco, Celso Furtado, Francisco Oliveira, mas lia poucos historiadores. Gilberto Freyre era vetado, Sérgio Buarque era vetado porque eram conservadores.

Em algum momento você se aproxima da política partidária?

Sou fundador do PT em Campina Grande, fui candidato a vereador, tive 400 votos. Entrei e saí do partido. Saí do PT no dia em que passamos uma tarde inteira discutindo se a gente emprestava ou não uma freezer para uma barraca do São João. A discussão era se aquilo era um gesto capitalista ou não, se um partido de esquerda poderia emprestar uma freezer para uma exploração comercial (risos). Então, quando eu vi que estava perdendo minha tarde discutindo o destino de uma freezer, achei aquilo muito kafkiano, então digo “não volto mais aqui”. Discutir se a freezer era capitalista burguesa ou não era demais pra mim (risos). Mas fui fundador da comissão de minorias, o PT foi o primeiro partido que teve secretaria voltada para minorias.

E como você avalia essas transformações pelas quais o PT passou daquele início até hoje, sendo oposição, governo e voltando agora para a oposição?

O PT sempre foi muito complexo e talvez essa seja a riqueza do próprio PT. Embora fosse se tornando menos complexo porque muita gente foi saindo. Mas o PT é um desaguar de movimentos sociais diversos, de várias resistências à ditadura. O PT tem uma importância muito grande porque já nasce como partido de esquerda que faz uma crítica a toda uma tradição autoritária de esquerda no Brasil. Ele faz toda uma crítica ao stalinismo, faz toda uma crítica ao partido comunista brasileiro e o que ele significou. Que em grande medida foi um partido fundado por militares, onde militantes e militares têm uma proximidade bastante grande. E também as coisas que aconteceram nos anos 1960, subjetividades que apostavam numa via quase suicida, quando muita gente foi tomada por um desejo de morte em aventuras que tinham pouca possibilidade de sucesso. Eram muito generosos em doar a vida a uma causa, mas ao mesmo tempo era uma doação quase heroica. Mas qual era a chance que você tinha de um grupo de 20, 30, 40 pessoas fazer uma revolução num país do tamanho do Brasil? Quem foi para o Araguaia... era meio delirante pensar em reproduzir Cuba aqui, essa obediência cega a modelos. E o PT nasce disso. Muita gente ligada às comunidades eclesiais de base.

O que representou a perseguição do Vaticano à teologia da libertação naquele momento?

Um dos motivos de vivermos numa sociedade conservadora tem a ver com a repressão à teologia da libertação feita pelos dois últimos papas. Isso foi terrível para o Brasil para a América Latina. A igreja era a grande formadora de lideranças e de subjetividades mais à esquerda. Somos um país religioso, de gente religiosa. E o declínio da teologia da libertação abriu o país para essas igrejas neopentecostais, com subjetividade neoliberal, claramente produzindo subjetividades ligadas ao dinheiro, à prosperidade, à substituição de um projeto de futuro por uma visão imediatista, presentista. Estamos vivendo num mundo preso ao presente, há uma falta de futuro. Por isso essa sensação de sufoco, claustrofobia. Perdemos a dimensão de futuro, não temos projeto, perdemos a utopia, agora na velocidade das dimensões contemporâneas. Acho que a perseguição que João Paulo II e Joseph Ratzinger perpetraram na teologia da Libertação... os fundadores do PT eram pessoas católicas, evangélicas. E devemos lembrar que a teologia da libertação esteve presente também na religião evangélica. Benedita da Silva, Marina Silva, Luiza Erundina são oriundas disso.

Diante da cultura do ódio, o mito do brasileiro como um homem cordial caiu ou nunca existiu?

Na verdade, há uma má compreensão da própria tese original de Sergio Buarque de Holanda porque quando Sérgio Buarque define em Raízes do Brasil o brasileiro como cordial, ele quer dizer que o brasileiro se rege não pela racionalidade, mas pelo coração. O brasileiro é passional. E o que estamos vendo aí é passionalidade, falta de racionalidade. É Cassiano Ricardo que toma a tese de Sergio Buarque e dá a ela uma nova elaboração. E como Cassiano é um dos ideólogos do Estado Novo, de Vargas, a leitura dele do homem cordial, do homem bondoso, gentil, que se aproxima do outro, que é hospitaleiro... essa visão é que prevaleceu. Mas a tese de Sergio Buarque é o contrário. O homem cordial é o que se rege pelo coração, que se rege pelas paixões, não pela razão. E politicamente ele não é racional. E o grande problema é que numa República, para Sergio, que em grande medida é um liberal, a República requer uma racionalidade e não ação politica passional, como estamos vendo aí. As pessoas se posicionam apaixonadamente sem qualquer distanciamento critico. Acreditam nas primeiras coisas que chegam no celular, acreditam no meme mais absurdo, desde que a mobilize afetivamente. O ódio e o amor são faces da mesma moeda.

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