Refletir ou replicar, eis a questão
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Refletir ou replicar, eis a questão

11 de junho de 2018
Refletir ou replicar, eis a questão

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Há uns anos, em meio aos caminhos que a vida nos apresenta, fiz um novo amigo. Gente boa demais, habitante de uma bolha diversa da minha e dono de um trabalho artístico consistente, este amigo utiliza a arte para expressar sua visão de mundo. Em nossos contatos, sempre procurou propor reflexões sobre a condição humana, comportamento, convenções sociais, demonstrando ter opiniões bastante originais a respeito de muitos assuntos. Altamente espiritualizado, sempre buscou ser um indivíduo evoluído, expondo opiniões firmes, mas com serenidade, a respeito de preconceitos, intolerância e desrespeitos. Politicamente, sempre demonstrou uma descrença atávica, uma postura de isentão bem antes de ser modinha. Evitava falar de temas que pudessem suscitar discordâncias de natureza partidária o que eu sempre apreciei, uma vez que não me apraz o conflito em torno de assuntos dissonantes, pois prefiro compartilhar ideias escritas como nesta coluna.

No entanto, mês passado, após cerca de um ano sem encontrar este amigo, tive a oportunidade de revê-lo e o teor de nossa conversa foi, no mínimo, diferente. Pela primeira vez, ele provocou o assunto político-ideológico, dizendo primeiro que não é de direita nem de esquerda, pois acredita que a humanidade não deve se resumir a isto. Surpreendido pelo clichê depositado sobre a mesa, tentei ironizar citando Dinho Ouro Preto: “quer dizer que você não quer ir nem para direita nem para a esquerda, prefere ir pra frente?” Além de não entender a brincadeira, ainda complementou: “pra frente e pra cima. Temos que ir pra cima.” Fiquei imaginando-lhe comandando um show do Capital Inicial, mas foi apenas “um passo sem pensar” de minha parte.

Em seguida, meu amigo tentou explicar que ele é um “livre pensador” e condenou os intelectuais que se posicionam como de esquerda, pois, segundo ele, estas personalidades perdem a credibilidade ao hastear uma bandeira, seja de que lado for. “Acho que o pensador tem que ser livre: nem de direita, nem de esquerda, pra cima. Porque senão ele acaba concordando com muita coisa errada que é feita, que a esquerda faz.” Intrigado, resolvi perguntar que coisas erradas seriam estas. Sua resposta começou a dar indícios que apontavam as razões da mudança de comportamento dele.

“A esquerda fica querendo impor a ideologia de gênero nas escolas, ensinando sexo para crianças de 6 anos. Foi o congresso que barrou.” Liguei o sinal de alerta e tentei argumentar com ele que o termo “ideologia de gênero” foi criado para oprimir e legitimar preconceitos e que essa informação que ele trouxe era, no mínimo, suspeita, dando toda a pinta de ser uma farsa, mentira ou, como dizem os jovens: “fake News”. Ele negou que fosse mentira, pois estava num vídeo que ele recebeu pelo WhatsApp. Ficou de me repassar o vídeo, prometendo que eu “sentiria nojo”. Não duvido, mas felizmente esqueceu-se de me enviar.

Ainda sobre o tema de educação sexual nas escolas, meu amigo disse que as escolas insistem em ensinar valores que muitas vezes “não são os valores da casa”. Falou que sua filha de 16 anos estava tendo aulas de educação sexual, na matéria de Biologia, que não correspondiam aos valores da casa dele e que ele estava com vontade de pegar uma espingarda de calibre 12 e atirar no professor dela. Achei sincero, mas nem um pouco evoluído. Busquei pela memória as aulas de educação sexual que tive no ensino médio e recordei-me que elas explicavam basicamente como funcionavam as relações dos hormônios com as nossas ações, falavam de métodos contraceptivos que evitariam uma gravidez indesejada ou o contágio por alguma DST e coisas do tipo. Não lembrei nada que incentivasse um comportamento promíscuo ou que estimulasse os alunos a se tornarem fiéis seguidores da Igreja do Marquês de Sade. Será que o meu amigo estava prestes a compor a bancada evangélica ou abrir uma célula do movimento Escola Sem Partido? Seja qual for o caso, espero que a parte da 12 tenha sido um exagero.

À parte da questão educativa, meu emissor revelou-me também que a atuação da esquerda no mundo é financiada pela Fundação George Soros, Fundação Ford e Fundação Rockfeller. Quase tendo um aneurisma ante a possibilidade destes 3 ícones do capitalismo mundial serem os grandes patrocinadores das iniciativas esquerdistas globais, eu contestei perguntando de onde ele tinha tirado aquela “teoria da conspiração”. Ao que me respondeu: “não, não é teoria da conspiração não. É verdade. Tem um vídeo que explica bem direitinho. Eles investem em movimentos de esquerda em países emergentes porque costumam gastar muito dinheiro e não produzem nada. Assim, eles mantém esses países subdesenvolvidos e os deles ricos.”

Ah, tá. Um vídeo. Provavelmente recebido ou postado em alguma rede social. Quase que eu complemento: “realmente, se tá na Internet, é verdade.”

E foi assim que eu percebi o quão vulneráveis nós estamos, uma vez que uma pessoa que eu respeitava tanto intelectualmente, cujos questionamentos e reflexões costumava ouvir com atenção, realizador artístico de valor, agora está se informando via memes ruins e vídeos de origem suspeita.

De livre pensador, passou para um mero replicador.

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