A prosódia do abismo
Natal, RN 28 de mar 2024

A prosódia do abismo

17 de janeiro de 2022
5min
A prosódia do abismo

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* Crônica publicada no formato impresso em papel de jornal no ano de 2004 e ainda inédita na internet

Minha avó nasceu em um sítio situado entre Patu, Olho D’água dos Borges e Rafael Godeiro, no distante ano de 1921. Ela viveu as profundas transformações que o século XX nos ofereceu lá de dentro do sertão potiguar. Passou pelo século protegida do mundo, em algum lugar na fronteira do século XIX e das transformações que a modernidade iria produzir nessa virada de milênio.

Quando ela era jovem, nos anos quarenta, o mundo entrava porta adentro da propriedade rural da sua família pelo rádio. Era o rádio que fazia com que o universo se tornasse maior do que a porteira do sítio e a estrada para a cacimba de onde se tirava água, mesmo no tempo de seca. Por isso, até hoje, com oitenta e dois anos, ela ama seu rádio. Passa boa parte do dia próximo dele ouvindo notícias, jogos do América Futebol Clube, orações de padre Marcelo Rossi e o programa de Duarte Júnior, na Rádio Cabugi.

Aliás... na hierarquia das pessoas mais confiáveis no mundo da minha avó aparece a seguinte lista: em primeiro lugar o Papa João Paulo II (esse é supremo), em segundo lugar o ex-ministro Aluízio Alves e em terceiro lugar... Duarte Júnior.

Foi numa manhã de sexta em que eu estava na casa de minha mãe (minha avó mora com ela) passando pela cozinha pra pegar um copo d’água... imagine amigo leitor, que ato mais banal esse de pegar um copo d’água... que tipo de surpresa pode se esconder, ou mesmo ser concomitante ao ato cotidiano e despojado de pegar um copo em uma cozinha de uma casa de classe média potiguar?

Mas aconteceu.

Surpreendentemente, sem que eu estivesse pronto para aquilo, do rádio em que minha avó escutava o programa de Duarte Júnior, sem nenhum aviso, subitamente saltou a voz de Jack Kerouac.

Sim, pode acreditar, era ele...

O autor de On The Road. Um dos pais fundadores da geração beat, aquele conjunto de escritores que, nos anos quarenta e cinquenta do século passado protagonizou o início da revolução comportamental que iria arrasar os quarteirões do mundo nos anos sessenta e setenta. Mas o que Jack Kerouac estava fazendo na rádio Cabugi? No programa de Duarte Júnior?

Na verdade, a peça fonográfica disseminada naquela manhã inocente de sexta-feira para todo o território Potiguar pelas onda da emissora da família Alves e para o deleite de bacuraus de todas as idades (como minha avó) era uma música de Pat Boone, que começava com trechos de Kerouac recitando, junto com Steve Allen ao piano, fragmentos do seu October In The Railroad Earth. Provavelmente só eu, dentre todos os ouvintes do programa do querido Duarte Júnior, tenha reconhecido a voz melodiosa de Jack, contando sua história como quem acompanha com a máquina de escrever a velocidade sincopada dos solos de Charlie Parker no saxofone.

Foi como se dois mundos passassem em paralelo.

Kerouac, que nasceu em 1922, se estivesse vivo, seria só um ano mais novo que minha avó. Eles fazem parte de uma mesma geração e compartilharam, mesmo que em geografias absolutamente discrepantes, o mesmo mundo por um certo período de tempo. Apesar disso, suas experiências, a forma como sentiram os desdobramentos do mais rápido, curto e extremo século das eras da humanidade, foi radicalmente diferente. Tão radicalmente diferente que não houve contato. Não houve toque, sentido e significado que firmasse uma ponte entre o mundo isolado e quente do sertão potiguar e o mundo entrecortado por concreto esfumaçado e envolto no carbono dos motores dos carros a transitar pelas movimentadas auto estradas da Nova York do Greenwich Village.

Mas... olha que talvez não seja bem assim... talvez seja eu esse contato. Talvez eu mesmo seja o nó, a dobra, o laço que une os mundos. Com minhas bandas partidas, com minhas partes fragmentadas, filho do sertão e da cidade, das sonoridades do vento litorâneo junto com as luzes brilhantes dos PCs e as redes de informação globalizadas.

Quer saber como eu sinto as gerações que nasceram no final do século XX? Como encruzilhadas ambulantes de mundos. Dançarinos de um abismo cada vez mais estreito que, a despeito de todas as diferenças, ainda pode nos aproximar e mostrar que a experiência do ser humano nesse planeta, mesmo diante de toda sua pluralidade, tem bases comuns. Espantosamente comuns.

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