Cientista vê mudança de postura das mulheres e das gerações mais jovens no combate ao preconceito de gênero
Natal, RN 28 de mar 2024

Cientista vê mudança de postura das mulheres e das gerações mais jovens no combate ao preconceito de gênero

12 de fevereiro de 2021
Cientista vê mudança de postura das mulheres e das gerações mais jovens no combate ao preconceito de gênero

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Quantos passos de distância existem entre uma juíza e uma cientista? A primeira profissão era a que Maria Carolina Gonzalez almejava quando criança. A segunda foi a que ela abraçou e que a trouxe de Buenos Aires, na Argentina, para o Brasil e - dentro do país - para o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra (IIN-ELS), do Instituto Santos Dumont (ISD), em Macaíba (RN).

Desde pequena, a menina sonhava alto: além de ser juíza, também pensou em se tornar médica. Os caminhos tomados, porém, foram outros, e trilhados inicialmente de acordo com as matérias com que mais tinha afinidade na escola.

A história da menina com a ciência começou desde cedo, percebendo que tinha uma conexão com a área, que fez sentido na escolha da graduação em biotecnologia, área em que é formada pela Universidade Nacional de Quilmes, na Argentina. Carolina tem atualmente 36 anos, é professora de neurofisiologia e pesquisadora no IIN-ELS desde 2019. Ela é doutora pela Universidade de Buenos Aires com experiência em mecanismos neurofisiológicos envolvidos na formação, expressão e modificação das memórias. A argentina é co-autora de dois artigos recentemente destacados em publicações científicas internacionais, exemplos de pesquisas onde tenta responder perguntas do tipo: “como impedir que memórias traumáticas tomem o controle do comportamento e impeçam uma vida normal?“Como algumas memórias duram mais que outras?” e "como as memórias são atualizadas?”, entre outras questões.

Uma nova possibilidade de modificação de memórias traumáticas é o resultado do artigo “mTOR inhibition impairs extinction memory reconsolidation”, que foi capa da revista americana Learning & Memory, em janeiro de 2021. O segundo artigo em destaque no ano, “GluN2B and GluN2A-containing NMDAR are differentially involved in extinction memory destabilization and restabilization during reconsolidation”, sugere um mecanismo para manter as memórias traumáticas reprimidas e foi publicado na revista Nature Scientific Reports. Os dois trabalhos foram escritos em parceria com os pesquisadores Andressa Radiske, Martin Cammarota, Diana Nôga, Janine Rossato e Lia Bevilaqua, do Laboratório de Pesquisa da Memória do Instituto do Cerébro (ICe) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ambos têm Radiske como autora principal.

Ciência no Nordeste

Em um cenário em que muitos brasileiros buscam oportunidades em outros países, a argentina chegou ao Brasil em 2014, onde passou a trabalhar com os estudos da memória em seu pós-doutorado no Laboratório de Pesquisa da Memória, do Instituto do Cérebro.

Neste dia 11, Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, conheça na entrevista a seguir mais sobre a história de Maria Carolina Gonzalez e as pesquisas que desenvolve no Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra.

O que você queria ser quando crescesse?

Bom, quando eu era criança eu queria ser juíza, mas gostava muito também de biologia e ciências naturais. Na escola, um professor de química orgânica, que era muito bom, me sugeriu conhecer a Universidade Nacional de Quilmes, que tinha licenciatura em biotecnologia, e eu gostei muito da grade curricular. Naquele momento era uma área que estava muito em alta em relação à terapia gênica e manipulação genética para melhorar e interferir na saúde, fazer novos medicamentos.. eu me interessei e fiz biotecnologia na graduação.

E como foi esse pulo de querer ser juíza na infância e acabar indo para a área de ciência e pesquisa?

Eu queria ser juíza, depois passei a querer ser médica no meio do caminho, mas para atuar na área de pesquisa, não tanto na parte clínica. Sobre seguir o caminho numa graduação diferente não tem um porquê específico, foi acontecendo. Lá na Argentina, quando você terminava o ensino fundamental, você podia escolher distintas áreas para continuar no ensino médio, por exemplo, ciências naturais, ciências sociais, economia, artes e na escola onde estudei acabei me voltando às ciências biológicas e exatas, áreas com as quais tinha maior afinidade.

Me conta um pouco sobre sua trajetória acadêmica e profissional...

A minha iniciação na pesquisa foi já durante a graduação quando passei a trabalhar com a professora Liliana Semorile no laboratório de microbiologia molecular, estudando os mecanismos de resistência aos antibióticos em bactérias. Porém, no meu último ano, cursei uma disciplina com o professor Diego Golombek, onde tive meu primeiro contato com as Neurociências, comecei a ler artigos sobre a memória e achei fascinante. A partir disso, eu comentei com o professor sobre minha identificação com a área e ele me indicou para a pós-graduação com um pesquisador chamado Jorge Medina, um reconhecido neurocientista na Argentina. A partir desse contato, eu comecei a fazer o doutorado pesquisando os mecanismos envolvidos na persistência da memória, buscando entender porque algumas memórias perduram mais que outras. O Jorge colaborava com o pesquisador Martín Cammarota que estava em Porto Alegre na época e, durante o doutorado tive algumas estadas em Porto Alegre e comecei a trabalhar junto com ele também.

Quando terminei meu doutorado em Fisiologia na Argentina, Martín estava mudando seu laboratório para Natal e eu me inscrevi no Programa Ciências sem Fronteiras, que na época queria atrair jovens talentos e foi a partir daí que cheguei a Natal, em 2014. Foi então que comecei a fazer parte do Laboratório de Pesquisa da Memória, coordenado pelos pesquisadores Martín e Lia Bevilaqua, e em 2019 surgiu a oportunidade no IIN-ELS, onde estou até hoje

Dados da ONU apontam que as mulheres representam apenas 28% dos pesquisadores no mundo. O que esse número reflete na sua trajetória como pesquisadora, como você sentiu isso?

Particularmente, nos laboratórios pelos quais passei, nós mulheres sempre fomos maioria ou estávamos presentes na mesma proporção dos homens, apesar de ser comum existirem mais homens nesses espaços.

Em algum momento - seja como estudante ou pesquisadora - você sentiu que não havia espaço para você nessa área? O que te levou a seguir adiante?

Eu nunca senti isso em qualquer um dos ambientes de trabalho em que estive. Nos laboratórios dos quais formei parte sempre me senti super apoiada, motivada e ouvida. Mas em outros contextos sim, percebi situações que revelam preconceito, por exemplo, em congressos ou conversas com colegas, onde eu estava ao lado de um pesquisador igualmente qualificado e as perguntas só eram dirigidas a ele.

Aqui no ISD temos muitas meninas estudantes e mulheres fazendo pesquisas, investindo em ciência nas mais diversas áreas - neurociências, saúde materno-infantil, reabilitação… Você enxerga que esse cenário de “minoria” das mulheres na ciência tem mudado?

Sim, acho que tem uma mudança de atitude, não só nas mulheres, mas, nas gerações mais jovens, como a dos meus alunos, eu observo neles que não há traços de preconceito de gênero.

No Brasil existe um movimento de emigração de estudantes/pesquisadores para outros países. Por exemplo, temos mestres que se formaram no ISD e estão fazendo doutorado na Alemanha, nos Estados Unidos.. E você fez um movimento contrário, veio da Argentina para cá. O que te motivou a vir para cá? O que é para você fazer ciência no Nordeste do Brasil?

Para mim, fazer ciência aqui é um desafio. Vim para cá confiando em um projeto que tinha como objetivo incentivar jovens e também com uma ideia de equipe, para compor o Laboratório de Pesquisas da Memória. A ideia é fazer ciência de qualidade e com as ferramentas que temos disponíveis, desenvolvendo soluções interessantes. Sem falar que gosto muito de Natal, que é uma cidade tranquila, com clima muito bom e pessoas amigáveis.

Porque você decidiu pesquisar a memória?

Muitas pessoas começam a estudar a memória por alguma ligação pessoal com o tema, por exemplo, algum parente que teve a doença de Alzheimer. Mas eu não tenho essa identificação pessoal. O que me interessa em estudar a memória é que existem várias perguntas muito relevantes que não foram respondidas, por exemplo, como algumas memórias duram mais que outras? Como as memórias são atualizadas?

Um dos meus objetos de estudo, por exemplo, é saber como impedir que memórias traumáticas tomem o controle do comportamento e impeçam uma vida normal. Lembrar de certas memórias traumáticas o tempo inteiro pode causar ansiedade e isso não é legal. Então, o objetivo de nosso trabalho é entender quais são os mecanismos que nos auxiliam a inibir memórias de medo. Como essas memórias podem ser reprimidas? Não significa que elas desapareçam, elas estão ali, mas não constantemente dominando o comportamento.

Um artigo recente que você escreveu - em parceria com a UFRN - foi capa da edição de Janeiro da revista americana Learning & Memory. Me explica de forma simples: o que mostra esse estudo?

Esse estudo que fizemos em parceria com a UFRN mostra os mecanismos que estão por trás de manter as memórias traumáticas reprimidas. Utilizamos um modelo animal para simular uma memória traumática artificial, em contexto de laboratório.

Por exemplo, digamos que você saiu da sua casa e na esquina da sua casa você é assaltada de uma forma um pouco violenta. Você fica com medo e isso é super normal, você passou por um momento ruim, mas precisa sair no dia seguinte. Você passa pela esquina, lembra do ocorrido e sente ansiedade, tem medo, mas você passa e vê que não acontece nada. Você continua passando por ali, você não se esquece do que aconteceu, mas vai criando outra memória inibitória (a memória de extinção) quando o episódio ruim continua não acontecendo e assim, o seu medo, a expressão da sua memória traumática vai se atenuando.

Nesse estudo, nós descobrimos que uma proteína, chamada mTOR - em português, alvo mecanístico da rapamicina - regula a produção de uma outra proteína, o Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro, que é fundamental para que as memórias aversivas ou traumáticas continuem reprimidas pela memória de extinção. Nós observamos que a inibição da proteína mTOR impede a persistência da memória de extinção e faz com que o medo retorne.

O que essa descoberta representa para a sociedade? que impacto poderá trazer?

Nossa descoberta é muito importante porque nos permite entender melhor os mecanismos responsáveis por manter inibidas essas memórias indesejáveis. Esse conhecimento pode ser aplicado no desenvolvimento de novas estratégias ou fármacos que potencializem as psicoterapias baseadas no processo da extinção de memórias, as quais tem como objetivo aliviar os sintomas de pacientes com distúrbios de ansiedade.

Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência quer incentivar equidade de gênero

 Em 2015, o dia 11 de fevereiro foi declarado como Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência em uma parceria da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) com a ONU Mulheres. O objetivo das organizações era incentivar a participação de mulheres na ciência, reconhecendo uma falta de equidade de gênero no setor. Segundo dados da Unesco, as mulheres representam cerca de 28% dos pesquisadores pelo mundo.

Para a professora-pesquisadora do IIN-ELS, um dos grandes desafios para a promoção da igualdade de gênero, é que as mulheres ocupem cada vez mais espaços de poder, onde hoje os homens são maioria.

“Acho que o que ainda dificulta é que muitos dos espaços de poder são ocupados por homens, em sua maioria, quando existem mulheres igualmente qualificadas, mas que sofrem preconceito. Em diversas situações, as pessoas que são mais escutadas e levadas em consideração são homens”, disse Carolina.

Ainda de acordo com os dados mais recentes da Unesco, homens publicam mais artigos, têm mais autorias principais e são mais citados que as mulheres: durante 2014, por exemplo, dentre os autores mais citados em pesquisas no mundo, somente 13% eram mulheres.

A realidade no Instituto Santos Dumont aponta uma perspectiva de mudança nesses dados. Nos cursos de pós-graduação do Instituto, Mestrado em Neuroengenharia e Residência Multiprofissional no Cuidado à Saúde da Pessoa com Deficiência, programas pioneiros no Brasil, 56% dos alunos ativos em 2020 eram mulheres. Além disso, nos trabalhos científicos publicados em 2020 pelos alunos do ISD, mulheres estiveram presentes como autoras e co-autoras em 36 das 47 produções científicas publicadas.

Pesquisa em saúde

A maioria dos trabalhos publicados no último ano é um reflexo da atuação do ISD em ciência e saúde, onde professores, pesquisadores, mestrandos e residentes desenvolvem soluções em diversas áreas, com destaque para a saúde. No Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi e no Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, pesquisa e inovação são instrumentos de um trabalho interprofissional na assistência à saúde da população.

Para a doutora em Ciências da Saúde e gerente do Anita/ISD, Lilian Lira Lisboa, a ciência está presente em todas as frentes de atuação do Instituto. "No Anita a gente trabalha com ciência de diversas formas, sejam os preceptores multiprofissionais, sejam os residentes, por estarmos atrelados à ensino, pesquisa e extensão e tudo isso é ciência. Então, todas as mulheres aqui trabalham para a ciência, para evolução, para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa", disse a gerente do Centro de Educação e Pesquisa Anita Garibaldi, Lilian Lisboa.

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