A alimária humana
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A alimária humana

11 de dezembro de 2018
A alimária humana

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Um animal é um ser vivo multicelular. Deve ter capacidade de locomoção, ainda que não se mova, e precisa dar resposta a estímulos, a não ser que esteja morto. Os animais se nutrem de outros seres vivos e, por um consenso social que ainda perdura, todos eles são considerados irracionais em oposição aos seres humanos. Tanto que chamar uma pessoa de animal é extremamente ofensivo, ainda mais se o animal for um cachorro, um burro, uma vaca, um macaco ou um porco. Se o animal for um gato ou uma gata, aí já é elogio. Prova disso é que o Google apresenta 208 milhões de resultados para a palavra gato; um vídeo de gatinhos graciosos no Youtube pode ter mais de 5 milhões de visualizações; e gatos no Facebook são garantia de incontáveis likes. Sei por experiência própria: os posts com fotos da minha gata malhada Milly sempre são os mais comentados da minha timeline, cheia de tentativas vãs de transcendência filosófica de parca repercussão. Justíssimo. Os felinos são criaturas absurdamente lindas e encarnam uma outra definição para a palavra animal, ou seja, aquilo que é carnal, sensual ou lascivo. Magnetismo animal quer dizer encanto carnal e sensualidade felina é uma redundância redonda.

Pois bem, é disso que se trata: animais. Não humanos e humanos. Franciscus Bernardus Maria "Frans" de Waal, é um primatólogo e etólogo holandês, que faz pesquisas científicas com animais de diversas espécies. A ciência há tempos reconhece a inteligência em animais não humanos, mas Frans de Waal vai além. Ele diz que há uma essência biológica na moral e atesta encontrar comportamento altruístico em espécies distintas. Mais: haveria verdadeiras amizades entre indivíduos dos outros animais. Tudo isso indica que a empatia não é puro sentimento nem exclusividade humana. Muitas pesquisas, como a da neurocientista inglesa Katie Daughters, demonstram que a empatia tem a ver com o hormônio ocitocina. Esse é o hormônio que possibilita à mulher literalmente dar-se como alimento ao seu filho. Sei o que é isso, sou mãe de dois rapazes que amamentei, além de mais um bebê, filho afetivo. A ocitocina nos abre para o outro. Por essa base biológica, de uma biologia que nos aproxima de muitos animais, os estados e atitudes derivados da empatia como altruísmo, solidariedade, moral e até ética, num sentido mais primordial, também não seriam privilégio da humanidade.

Cabe perguntar: como foi que nos apartamos da nossa natureza, essa mais animal, a ponto de nos desconhecermos como tal e nos permitirmos escolher egoisticamente os animais que merecem viver e os que merecem morrer? Repudiamos os casacos de pele felpuda, mas portamos it bags de couro de vaca; salvamos as baleias, mas que os frangos vivam e morram miseravelmente em granjas, pouco nos importa. Se achamos adoráveis os coelhos e odiosas as cobras, isso é parte da nossa condição de animalidade. As cobras podem nos matar; os coelhos, podemos comer. Mas negamos essa mesma condição quando tratamos alguns outros animais como o tipo de humanos que somos, rechaçando tudo aquilo que os faz pertencer a uma determinada espécie. E, assim, vestimos roupinhas, calçamos sapatinhos em cachorros, os fazemos passear em carrinhos por corredores de shopping centers como se as vitrines e as aglomerações lhes interessassem. Pois, sim. Criamos a cultura para superar a nossa morte e nos separamos da nossa biologia como consequência disso. Então, desenvolvemos a nossa morte e a das outras espécies como indústria, estipulamos critérios para decidir quem deve morrer como gado e quem pode viver como um deus. Nossos etnocentrismos rejeitam culturas diferentes da nossa, enquanto nosso antropocentrismo despreza tudo o que não nos pareça humano. E é por aí que os cachorrinhos viram os bebês da solidão urbana. E por aí também que nos desumanizam os genocídios que abundam na nossa história.

Nós fazemos essa história todos os dias. A indústria da morte rende audiência e muito dinheiro nos telejornais do mundo. A última partida de futebol da Copa Libertadores 2018, travada entre os times argentinos River Plate e Boca Juniors em Madri, Espanha, foi manchete de jornais e telejornais por dias e dias. Menos por causa do esporte e muito mais por causa da violência das torcidas dos dois times, que impediu que o jogo ocorresse em Buenos Aires. Na TV, essa máquina do tempo instalada em toda parte, os gladiadores atravessam as eras e os continentes para se digladiarem até a morte diante de telespectadores que giram invariavelmente os polegares para baixo.

Depois do horror, fazemos literatura e filmes. Assim, tentamos purgar o holocausto, a fome na África, os imigrantes do oriente, que morrem como cardumes na travessia do mar Mediterrâneo para chegar à Europa, e os latino-americanos barrados pelo muro de balas entre o México e os Estados Unidos. Só que nem purgamos e nem conseguimos parar essa indústria da morte lucrativa em que só podemos, como humanos, perder. Por que seguimos perdendo com as guerras por petróleo e por drogas, com o homicídio de jovens negros no Brasil, 63 por dia, ou com o feminicídio, que mata 13 mulheres diariamente em nosso país? Nas telas, a morte é mais estética. Pode entreter, mas também tem potencial para comover até quem não se comove com uma criança destruída pelo crack ou com uma adolescente imunda, que se prostitui para fumar mais uma pedra justo no semáforo da esquina mais próxima.

Sim, o relato pode produzir muita empatia. A narrativa da morte pode impactar muito mais do que a morte em si, já que narrar é um ato cultural, simbólico; mobiliza a imaginação e potencializa as emoções, o que nos permite projeção em mocinhos e bandidos. Pode anestesiar, também, quando é só um espetáculo vazio; podemos nos lamentar a distância em segurança e relevar a nossa própria condição de mortalidade. Quem morre é sempre o outro e isso, em oposição, nos faz sentir mais vivos. A polarização tem esse efeito: ressalta as características de cada polo oposto. Por isso, se somos racionais e consideramos que os outros animais não o são, nos percebemos como mais inteligentes por oposição. Mas e se os animais não humanos não são assim tão irracionais? E se podem ser mais altruístas, mais solidários, mais empáticos entre si do que nós entre nós mesmos? Que espécie de alimária seríamos nós, então?

Humana, demasiado humana. Com tanto de bom quanto de ruim por essa condição. Eu, com tudo isso, ainda acredito que poderíamos ser diferentes, apesar de sermos tantas vezes indiferentes. Quase deixando de acreditar, aviso logo. Sei que podemos ser cruéis, incansavelmente. Que podemos matar por dinheiro. Que podemos dormir quando o mundo inteiro grita. Mas sei também que tudo isso vai contra a nossa natureza empática, contra a nossa animalidade mais profunda. Carl Jung já disse que alguém saudável não tortura o outro porque é preciso ser um torturado para conseguir torturar. Disse também que todos carregamos uma sombra e quanto menos saibamos dela, mais negra e densa ela será. Pois as sombras estão na cultura e é ela que nos brinda com os preconceitos. Ela impregna a nossa biologia e cria biologias periféricas, alterando nossa sensibilidade. Assim, deixamos de sentir o que deveríamos sentir ou sentimos o que não deveria nos impressionar. Sem que tenhamos consciência alguma desse fato.

Sem saída? Talvez. Ou com muito poucas. Tenho convicção de que, se há alguma via de escape, ela passa pelo outro além de mim, passa pelo coletivo. Para sobrevivermos ao desastre que tem sido a nossa espécie, precisamos salvar a empatia. Só ela pode fazer de nós uma espécie melhor. Para sermos empáticos, precisamos compreender o outro e a compreensão é um ato cultural, assim como a narração. A mesma cultura que nos dá a sombra, nos deu a linguagem e o relato, a música, a arte, a literatura e a poesia. Nos deu o choro e a risada. Nos deu também heróis míticos, pensadores de carne e osso, sonhadores familiares, contestadores juvenis e aventureiros sem idade. E nos deu o altruísmo anônimo e diário de uma mãe, de um pai ou de um amigo mais generoso. Um desses papéis nos cabe. Assim, todos podemos sair simbolicamente de nós mesmos para nos colocarmos no lugar do outro como resultado de um potente exercício de imaginação. É só desse modo que a sua dor pode se tornar a minha, a minha alegria pode estancar a sua tristeza e um gato andando em uma rua de cidade pode nos lembrar a todos um belo exemplar humano caminhando mansamente numa praia cheia de calor.

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