A arte de manipular o medo
Natal, RN 23 de abr 2024

A arte de manipular o medo

16 de agosto de 2018
A arte de manipular o medo

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Parece que o capitão Jair Bolsonaro já tem um oponente à altura. E de patente inferior, ainda por cima. O Cabo Daciolo passou de ilustre desconhecido no cenário nacional a protagonista de uma das melhores tempestades de memes que a internet já viu nos últimos anos. Após interpelar, no primeiro debate presidencial, um perplexo Ciro Gomes acerca de uma conspiração comunista global para a criação da URSAL (União das Repúblicas Socialistas da América Latina) elaborada a partir da ação de uma, ao mesmo tempo obscura e onipresente, entidade bolivariana chamada “Foro de São Paulo” (da qual um atônito Ciro Gomes se descobriu fundador ao vivo em rede nacional) o nome de Daciolo atingiu patamares virais nas redes sociais.

Rapidamente a URSAL já tinha hino, bandeira, camisa da seleção, passaporte, símbolo nacional (um ursinho vermelho com a foice e o martelo), perfil nas redes sociais e já especulávamos até a melhor escalação para a copa de 2022 sabendo que teríamos um ataque imbatível com Messi, Luizito Suarez e Neymar.

Quase sem querer, o Cabo Daciolo, que injetou doses nunca vistas de dadaísmo no circo dos debates presidenciais, como uma espécie de paródia pouco articulada do seu companheiro Jair Bolsonaro, acabou ao mesmo tempo expondo um dos recursos ideológicos mais utilizados no campo da arena política. No fim das contas o que a treta da URSAL nos ensina é que só o humor supera a arte de manipular o medo.

O filósofo Slavoj Zizek, em suas análises sobre o conceito de “ideologia” faz um menção curiosa ao filme “Tubarão” de 1975, dirigido por Steven Spilberg. Na época em que o filme foi lançado muitos críticos acreditavam que o monstro marinho que atacava banhistas inocentes em um balneário norte americano era uma metáfora para a ameaça estrangeira. Uma menção simbólica aos imigrantes que atravessam a fronteira dos EUA pelo sul e punham em risco o bem estar e a tranquilidade de uma população euro-descendente que usufruía calmamente dos benefícios de sua própria riqueza. Deste modo, o filme seria uma peça de propaganda política da direita conservadora, que anos depois iria eleger o ator de filmes de faroeste Ronald Reaga, e que hoje apoia a manutenção de crianças em jaulas na fronteira com o México, vibrando com cada tweet racista de Donald Trump.

O problema é que “Tubarão” tinha outro fã de carteirinha. O camarada Fidel Castro gostou muito do filme e interpretou o monstro assassino como um símbolo para a força predatória do capitalismo liberal que devora sem pudor aqueles que vivem sob um regime supostamente democrático. Para Fidel, “Tubarão” já era um clássico da esquerda de Holywood.

O que Zizek nos mostra é que as duas interpretações, apesar de divergentes, estão corretas. O monstro marinho do filme é um significante vazio. Um espaço semiótico onde qualquer conteúdo pode ser depositado. Ele pode simbolizar qualquer coisa, porque sua função ideológica não tem a ver com o conteúdo da doutrina que ele suporta, mas da função que ele exerce na arte de manipular o medo.

O medo é um dos mais antigos companheiros do ser humano.

Existir é ser acossado por medos múltiplos e dispersos. Tememos a doença, e a velhice. Temos receio de morrer em um acidente, de sermos vitimas de catástrofes naturais, de sofrermos agressões físicas, sermos roubados. Nos assombramos com a possibilidade de ver nossos filhos assassinados, nossas filhas violentadas, nossa propriedade invadida, nossa identidade sexual alterada. A quantidade de projeções fantasiosas que alimentam nossas fobias cotidianas faz com que viver seja uma experiência quase insuportável.

Por isso, uma das funções mais significativas da ideologia é oferecer uma imagem simples, geralmente redutora, que serve para unificar todo o mal e se manifestar como a fonte única de todo medo. Assim, o tubarão assassino, o judeu que ameaça a pureza da raça, o imigrante que rouba o emprego, o vagabundo que me assalta na esquina, o sabotador fascista contra revolucionário, o terrorista islâmico, Lúcifer, o príncipe das trevas em sua rebelião contra Deus; todos podem ser reduzidos à fonte de todo mal e destruídos em um ritual de exorcismo do medo, que me permite estabilizar minha coleção particular de pavores e tornar minha vida suportável.

O que a direita ululante está promovendo com a histeria anticomunista no Brasil, que nos presenteia com teorias conspiratórias que giram em torno de uma ameaça comunista global iminente, é transformar a palavra “comunismo” num significante vazio, à semelhança do tubarão do filme de Spilberg. Um signo que comporta qualquer discurso, qualquer doutrina, quaisquer ideias e valores. Por isso todo mundo pode ser comunista: de Xuxa, com seu hino de 1992 a uma América unida, até o camarada Mark Zuckerberg, que manda para o Gulag digital as páginas do MBL.

Como todo mundo sabe, após a redução ideológica do medo a uma figura concreta (o diabo, o judeu, o comunista), o próximo passo dos que manipulam o pavor intangível que acossa os corações humanos é a promoção do sacrifício ritual do objeto ideológico. Não importa se através da explosão do tubarão no clássico filme de 1975 ou do ritual macabro dos genocídios políticos que presenciamos cada vez mais frequentemente nos últimos séculos.

Por isso, precisamos agradecer ao Cabo Daciolo por nos ter dado a oportunidade de injetar no significante vazio da “grande conspiração comunista global” doses cavalares de humor tipicamente brasileiro. Essa é a grande diferença entre o trágico e o cômico. Acreditar em nossas reduções ideológicas é bem mais perigoso do que rir delas. Só por isso, quando realmente conseguirmos criar a URSAL, o Cabo Daciolo merece ter uma estátua erguida ao lado de uma outra de Ciro Gomes (o fundador secreto do Foro de São Paulo) e de Lula da Silva, nosso eterno “Lênin do Sertão”. Continue firme Cabo Daciolo! Hasta la victoria, siempre!

Veja aqui comentário de Pablo Capistrano em vídeo, exibido pela TV Universitária.

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