Tenho pensado, faz um certo tempo e cada vez mais, nas curiosas e complexas relações entre as cidades e os impressos. Não exatamente panfletos insistentes de esquinas e sinais, não exatamente convites ou cartazes de eventos diversos, não manuais nem missais, tenho pensado especificamente em invisíveis livros e subterrâneos jornais que, de algum modo, teimam em fazer existir essa coisa tão inútil quanto necessária: literatura.
Esses livros e jornais literários, invisíveis e subterrâneos, têm uma maneira toda especial de se configurar na geografia afetiva das cidades. A cidade acontece – também – por meio desses impressos e só sabe quem vive tal sociabilidade em uma condição urbana muito específica – literária – de ser.
Não vou falar do flâuner de Baudelaire e Benjamim ou da alma encantadora das ruas de João do Rio. Vou apenas dizer que, em Natal, há demais. Um monte de publicações independentes, selos editoriais, além de sebos e, vá lá, duas ou três livrarias legais. Em Natal, a literatura acontece, sim. Acontece um monte de projetos legais. Uma galera teima em fazer e viver literatura, por mais que o Mercado, a Universidade, as Academias não vejam.
Aliás, outro dia, mais uma edição de (re)existência poética aconteceu na cidade. Foi um encontro tão bem encontrado... sem apoio de patrocínios ou partidos, para além de editais etc. e tais, foi a ação de quem tem sangue nos olhos e faz ação direta no peito e na marra. Era feriado de finados, tá. Era o dia do Mulherio das Letras também (outra ação ótima, aliás), tá. Mas era também mais uma opção para leitores, editores, livreiros, amantes dos impressos literários em geral para conferir o que de literatura acontece na cidade.
Mailson Furtado, poeta cearense vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura de 2018, não só na categoria de melhor livro de poesia como também melhor livro do ano, esteve em Natal e na Casa da Ribeira para trocar figurinhas e ideias sobre arte, literatura e seu livro – totalmente pensado e feito no estilo “Independente Futebol Clube” e reconhecido-premiado pela oficialidade – intitulado “À cidade”.
Penso: viva a liberdade de se transitar por onde se quiser. Faz de conta que a vida é de cada vivente e cada qual decide onde ir, seguir, errar. Mas também penso: não basta não ter biblioteca no Estado e no Município, não basta não ter livrarias que contemplem autores locais, não basta não ter políticas públicas de leitura e formação de leitores, há ainda que se perguntar: cadê as gangues e plateias que bradam por mais literatura na cidade? Cadê leitores, editores, livreiros e amantes dos livros que referendam essa coisa inútil e necessária que teima em existir, em ações pequenas e diversas, insurgentes e resistentes, cadê esses seres que afinal e efetivamente não aparecem e não referendam, para além de suas provincianas panelas, a literatura na cidade?
Os impressos estão aí. Quem puder, quiser, tiver sangue nos olhos, que os leia. Circula na nossa Natal agora um livro invisível e subterrâneo chamado “À cidade”, um independente feito na marra e que foi vencedor da 60ª edição do Prêmio Jabuti de 2018. Um livro de um cara normal, nordestino e gente como a gente, que teima e resiste. Um livro para se ler e se viver a condição de cidadão literário. Lendo seus versos me lembro de quando – e eu não estava lá, mas li – o poeta Henrique Castriciano ajudou a criar a lei estadual para publicar e incentivar autores e leitores locais. Talvez ali, na época da oligarquia dos Albuquerque Maranhão, se levasse o livro mais a sério e se lesse realmente mais. Lendo Mailson Furtado hoje, penso nos impressos de agora, de outrora, daqui e d´alhures, nos impressos em sua estranha e curiosa relação com as cidades em geral:
eu vago
só
vago
entre muitos
nas ruas
vago
mas há vagas
as ruas
não negam
não negam
uma calçada
(de cimento rachado)
uma sombra
(debaixo do oitizeiro)
não negam
caminho
não negam
ninguém
nada
nada pode ser
mais democrático
mais ditador
mais comunista
mais anárquico
que a rua
nada pode ser
***
A rua nasce
sem casas
sem postes
sem gente
com nome
(sem necessidade de aprovação
por maioria absoluta de votos
na sessão ordinária da câmara municipal)
A rua se batiza
rua do mercado rua do canal rua da caixa d´água
rua da mangueira rua do cruzeiro rua do clube
rua da jurema rua do meio rua do campo
(não ponham meu nome em ruas
não sou digno de roubar seus nomes
como ninguém é)
A rua vive
casas botam suas calçadas
de fora
postes e seus fios se enrolam
e no alto tomam a visão
ora das nuvens
ora das estrelas
mongubas sempre-verdes pés-de-oiti nins-indianos
improvisam uma pitada de verde
numa rua sem cor
Como as cidades, os impressos estão aí, no mundo. Nas cidades e nos impressos, a literatura viceja, em cada página e em cada rua onde flutua uma folha (de árvore, de papel) discreta e esquecida. Quem puder e souber que leia.
Mas exijamos, a quem for, ainda assim, literatura nos impressos da cidade. Para todos, sempre, aqui e acolá. Ontem, agora e amanhã, onde quer que seja, que haja público leitor: em Varjota, Rio, Paris...
Ou Natal.