A cultura do estupro e a responsabilidade do Estado
Natal, RN 29 de mar 2024

A cultura do estupro e a responsabilidade do Estado

22 de dezembro de 2018
A cultura do estupro e a responsabilidade do Estado

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O Estado do Rio Grande do Norte é o que mais estupra mulheres, segundo o Atlas da Violência de 2018, em pesquisa divulgada pelo IPEA, em 5 de junho de 2018, e que pode ser lida aqui. Os dados compilados de 2016 trazem o RN com concentração de 18% de todos os estupros no país. Foram 4.088 casos em que mulheres procuraram uma unidade de saúde (Sinan/MS) para atendimento após a violência sexual sofrida, para profilaxia DST/AIDS, contracepção de emergência, ou para tratar algum ferimento. Somente 206 desses casos de estupro foram denunciados pelas vítimas à delegacia. Esses dados fazem do RN o Estado mais perigoso para mulheres viverem, registrando que o risco de estupro é concreto.

Os números do RN estão na contramão dos casos de estupro registrados no país. Em 2016, no Brasil, foram 22.918 estupros atendidos nas unidades de saúde e quase o dobro, 49.497 casos foram levados às autoridades de segurança pública para investigação e punição. No Estado, somente 5% dos casos de estupro são denunciados pelas vítimas à delegacia. É preciso se perguntar o porquê das vítimas não irem à delegacia denunciar.

Atual e importante essa temática, diante da trágica posição ocupada pelo RN, e bastante oportuna, pela explosão de denúncias de assédio e estupro contra o médium João de Deus. É preciso falar sobre a cultura do estupro.

Até o momento, foram mais de 300 mulheres que denunciaram o médium João de Deus. Algumas delas relatando fatos ocorridos há mais de 10 anos. Há até casos de filhos que denunciaram fatos ocorridos contra sua mãe, já falecida. Sempre houve denúncias de crimes contra a dignidade sexual, em tese, praticados pelo médium João de Deus, mas nunca houve punição.

Mesmo havendo esse grande número de mulheres, de diversas partes do país e do mundo, que denunciam os abusos sexuais praticados pelo médium, com detalhes dos fatos, anunciando a mesma forma de agir, ainda há quem prefira acreditar nele. Mais de 300 mulheres que não se conhecem e relatam fatos ocorridos em datas diversas, com o mesmo modus operandi, e algumas pessoas acreditam na palavra do abusador.

Surgiram versões de que eram as vítimas quem o assediaram, que elas estão mentindo (um repórter de TV, em rede nacional), que há um delírio coletivo (uma suposta psicóloga), e que estão querendo extorquir dinheiro do médium. Até a palavra da filha do médium, que o acusa de abusos continuados, desde a infância, foi colocada sob suspeita.

A cultura do estupro se caracteriza por essas circunstâncias. A inversão do ônus da prova, em que a vítima tem que repetir a mesma história do abuso várias vezes, não esquecer nenhum detalhe (sob pena de ser acusada de mentir), e oferecer provas do fato, além de demonstrar que é uma “mulher honesta”, são algumas das responsabilidades que pesam sobre os ombros de uma mulher que denuncia um abuso sexual. Essa mesma cultura do estupro faz com que a vida da vítima seja investigada. A vítima é sempre questionada do porquê de não ter gritado, por que não fechou as pernas, por que não resistiu, ou por que só veio denunciar depois.

É preciso ter como ponto de partida que não é fácil denunciar um abuso sexual. Não se pode exigir que uma mulher que foi abusada, e que ainda está sob o efeito das consequências que o crime gera (sentimentos de culpa, violação, incompreensão, medo, insônia, depressão, pânico, transtornos de alimentação, dificuldade de relacionar-se com outra pessoa afetiva e sexualmente etc.). Além disso, se pergunta: Por que eu? Será que eu fiz alguma coisa para que isso acontecesse? E se eu não tivesse ido ou feito isso ou aquilo? Será que alguém vai acreditar em mim?

Não se pode exigir que a vítima vá imediatamente à delegacia denunciar o abuso sofrido, como denunciaria um assalto, para que sua palavra tenha credibilidade. Há muitas nuances em fatos dessa natureza. Conviver com a exposição pública de ser apontada como “a mulher que foi estuprada” não é fácil. Por isso, por se sentir insegura quanto ao fato de darem credibilidade a sua palavra, a mulher titubeia e retarda em denunciar, ou nunca denuncia. Algumas guardam silêncio por uma vida inteira. Outras só falam muito tempo depois. E há outras que denunciam e desistem de prosseguir querendo a ação penal no meio do caminho. Esse itinerário é tormentoso. O caminho para a delegacia é longo, não fisicamente, mas psicologicamente. A decisão de denunciar uma violação sexual é muito difícil.

Entretanto, se de um lado temos a punição individual de quem praticou o abuso, há outro problema, que é estrutural. A cultura machista, hierarquizada, que valoriza a masculinidade associada à virilidade, ao predador e ao homem que não pode ser rejeitado ou rejeitar, favorece tanto a naturalização de atos de homens que assediam, quanto a aceitação da sociedade em relação ao comportamento viril, e por que não dizer de descrédito e suspeita constantes quanto à versão da vítima de violação sexual. “Deixe pra lá”, “homem é assim mesmo”, “você estava embriagada”, “com quem estava”, “o que fazia uma hora daquela na rua”, “se não tivesse ido, não tinha acontecido”, “você tem certeza?”, “estranho você não ter gritado, corrido, resistido...”.

O enfrentamento dessa cultura machista é também responsabilidade do Poder Público. Há um grande desafio para as gestões estadual e dos municípios, que é tirar o Estado do topo do ranking nacional dos estupros. Fortalecer os serviços de acolhimento às vítimas, para além do sistema de segurança e de justiça, é um ponto a ser efetivado. As vítimas precisam de atendimento sem julgamentos, que as escute e acolha, dando-lhes uma proteção integral. Esse serviço é de fundamental importância no fortalecimento e segurança para que essas mulheres procurem a delegacia e denunciem os abusadores. O RN é o segundo Estado (atrás apenas do ES) que registou a menor procura de mulheres para denunciar os estupros sofridos, embora seja o primeiro lugar no número de casos. Esse dever de acolher e de dar segurança às vítimas é do Estado.

É também dever do Estado agir contra o machismo estrutural, sendo sua responsabilidade adotar providências e ações no sentido de “modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher”, conforme preceitua a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1º. de agosto de 1996, através do Decreto 1.973.

O Estado não pode se omitir em combater a cultura machista, que mata, agride, abusa, desiguala e vulnera mulheres. Combater o machismo e a cultura do estupro significa garantir uma vida digna e sem violência para mulheres no nosso Estado.

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