A desumanização em manchete
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A desumanização em manchete

5 de setembro de 2017
A desumanização em manchete

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Os meios de comunicação desempenham papel decisivo na construção de uma consciência social sobre o que sejam os Direitos Humanos. Lamentavelmente, o conceito que tem se massificado é o de que direitos humanos só servem à defesa de bandidos e, por isso, o trabalho dos defensores de direitos humanos no Brasil e em muitos países é uma atividade de risco que significa fazer frente a violentos e poderosos interesses e que agencia o ódio de parcelas cada vez maiores da sociedade. Noutras palavras, é ser confundido, capturado e igualado ao que se entende por ser bandido.

A cobertura dada pela imprensa, especialmente no que se refere à violência e a criminalidade, contribui para a formação desse senso geral que acredita que aqueles que cometem atos infracionais em nosso país gozam de benesses e privilégios. Sendo “os direitos humanos” responsáveis pelo abrandamento de penas e pela oferta de auxílios (sempre aos criminosos, nunca às vítimas).

Ora, mesmo a olhos displicentes é fácil a constatação de que os privilegiados em nossa sociedade são outros. De que aqueles que são exibidos diariamente em jornais e programas de tv como sendo as razões de todas as mazelas sociais e tidos como “boa-vida”, são na verdade a parcela da população a que toda sorte de direitos tem sido negada. Pessoas pertencentes a contextos econômicos, sociais, culturais e políticos que marcam suas formas de ser e estar no mundo.

Menos preocupados em informar e mais em alardear uma sanha punitivista que oriente o olhar da sociedade para os indivíduos e não para o Estado, a cobertura midiática sobre violência e segurança costuma ser focada em episódios factuais e carentes de qualquer abordagem analítica que, além de não informar a contento, tomam partido, julgam e condenam, difundindo mensagens marcadamente estereotipadas, carregadas de estigmas e preconceitos.

Em uma campanha de culpabilização dos pobres, tais coberturas abordam a violência como um fenômeno de geração espontânea, que prospera porque há homens maus e violentos, e tudo se resume a um traço de personalidade ou um defeito de caráter. Não à toa prospera a figura do chamado “cidadão de bem” (herdeiro do antigo discurso da moral e dos bons costumes), que distinguido dos ditos delinquentes, claro, sente-se legitimado para defender toda sorte de crueldade e selvageria para com aqueles a quem a condição de humano já foi contestada.

A midiatização da violência e do crime procura expressar na punição toda a repulsa ocasionada pelo ato praticado. A prisão é estipulada não como uma forma de reabilitar, mas sim como meio de vingança. Imagens e palavras são usadas para rotular e estigmatizar. Não se fala em pessoas. São delinquentes, meliantes, bandidos, ladrões, menores infratores, trombadinhas, psicopatas. Desumanizados, é natural que não detenham quaisquer direitos.

Outro traço marcante das coberturas sobre violência é a diferenciação feita quando a vítima pertence às camadas endinheiradas da população. O clamor pela punição dos culpados não é replicado quando jovens negros são exterminados nas periferias. O silêncio sobre essa violência traz a marca indisfarçável da discriminação e comunica à sociedade que há mortos dignos e outro não, fazendo transparecer que certas violências não contam, que são como ritos necessários à depuração da sociedade.

Aqui no estado, somente até o mês de agosto deste ano, 1.647 vidas foram perdidas por condutas violentas letais intencionais (homicídios). São seis mortes por dia. Para além dos números, das estatísticas e das imagens de cadáveres, o que se vê na mídia sobre isso? Algum debate público consistente sobre as razões dessa escalada de violência? As vozes dos que estão diretamente envolvidos nesse contexto foram ouvidas? A coincidência no perfil das vítimas foi abordada?

E sobre o sistema prisional? De 2002 até 2016, a população carcerária brasileira cresceu 267,32%. O Brasil chegou, portanto, ao espantoso número de 306 pessoas privadas de liberdade para cada 100 mil habitantes, o dobro da média mundial, de 144 presos para cada 100 mil habitantes. Não bastasse o número elevado, 40% do total (quase 250 mil) é de presos provisórios, ou seja, pessoas que se encontram cerceadas em sua liberdade sem sequer terem sido julgadas.

Em um ano marcado por massacres em várias penitenciárias no país, é inevitável lembrar que elas só costumam ser pauta na imprensa quando acontecem fugas ou rebeliões. A tortura, a comida estragada, a visita vexatória a que familiares (quase sempre mulheres) são submetidas, a falta de assistência jurídica e de saúde, dentre outras violações que ocorrem cotidianamente no interior dos presídios via de regra não mobilizam a mídia.

Ora, se estamos matando mais, encarcerando mais e temos a tortura como uma prática permanente, o que explica o senso geral de que temos penas brandas; de que as pessoas em conflito com a lei são superprotegidas pelos defensores de direitos humanos; de que elas gozam de privilégios que conflitam com o destino que deveriam ter as suas desgraçadas existências?

O populismo penal midiático tem grande parcela de responsabilidade por não problematizar os conflitos sociais ou refletir de forma séria e embasada sobre eles. Isso obviamente não acontece à toa, tampouco pode ser resumido a falhas dos veículos ou de seus profissionais. Trata-se de um posicionamento ideológico conservador e elitista, que está a serviço da criminalização da pobreza, da higienização das cidades e da manutenção das hierarquias sociais.

A política da “mão dura”, “lei e ordem” têm servido apenas para organizar o crime, exterminar a juventude negra e eleger e reeleger bancadas ultraconservadoras que jogam com o populismo penal e o anseio imediato da população, defendendo soluções simplistas e marqueteiras para um problema complexo.

O campo dos direitos humanos sofre com o mau jornalismo. Microfones e lentes têm sido usados para violar direitos, desumanizar pessoas e propagar o medo. Horror e medo difundidos, opinião pública sedenta por vingança, o caminho para que a população consinta, naturalize e até clame por soluções cada vez mais conservadoras e violentas está trilhado. Assustados e impotentes, passamos a desejar finalmente sermos redimidos, salvos por um Messias que prometa tolerância zero e mãos de ferro.

Esta perigosa aventura fascistóide da mídia fortalece candidaturas que têm no ódio a sua principal bandeira, prestando um desserviço à humanidade e ao país e impelindo o respeito, a promoção e a defesa dos direitos humanos como uma urgência civilizatória.

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