A doença do Carrapato
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A doença do Carrapato

30 de abril de 2018
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Outro dia, numa aprazível tarde de um feriado prolongado, tive a oportunidade de conhecer um político que exerce a função de vereador em um município interiorano do Rio Grande do Norte. Bastante extrovertido e expansivo, bradava em altos decibéis sobre quaisquer assuntos que viessem à tona, além de contar boas histórias que iam de festas e bebedeiras em sua cidade, passando por peculiaridades de sua rotina como agente público numa pequena cidade. Aqui e ali, disfarçava certas abordagens mais intrometidas, um tanto íntimas demais para alguém que mal conhece com seu jeito rústico e despachado. Como se o espírito de autenticidade rural e espontaneidade interiorana justificassem toda e qualquer intromissão na vida de semi-conhecidos. O próprio nome do sujeito conferia certa aura pândega a compor sua personagem. É chamado por todos de Carrapato, o que já entrega um jeito um pouco pegajoso e incômodo de ser.

Em todo caso, a pitoresca figura pública se tornava cada vez mais estridente à medida que o álcool que consumia aos borbotões irrigava sua corrente sanguínea e estimulava suas funções cognitivas a ponto de eliminar todo e qualquer resquício de inibição que ainda pudesse resistir. Como se diz popularmente, eu estava diante do processo químico no qual “a bebida entra e a verdade sai”. O tom de voz foi ficando ainda mais alto, a voz um tanto pastosa, mas dava para compreender. Nesse ponto, começou a confessar alguns desvios, como as corriqueiras fugas de blitzen da Lei Seca brasileira, mas também a comprometer alguns amigos e conhecidos.

O que mais me chamou a atenção foi ele ter me contado que é amigo do senhor José Vanildo, presidente da Federação Norte-rio-grandense de futebol e, em razão da proximidade e confiança, já presenciou diversas negociatas envolvendo o cartola local e alguns dos seus pares nacionais, entre eles o dirigente Andrés Sanchez (atual mandatário do Corínthians) que até pouco tempo almejava ser candidato à presidente da CBF. O vereador contou que costuma tomar emprestado um camarote na Arena das Dunas pertencente à Federação para assistir jogos com correligionários e amigos.

Sobre os contatos mantidos entre os cartolas, o político entregou: “Ei, os dois se falam direto no telefone e é só roubo o que eles combinam!” Perguntei se era confortável a função de chefia de uma federação estadual, ao que ele detalhou: “É bom demais! São mais de 150 mil por mês sem precisar prestar conta.”

A certa altura da conversa, alguém soprou ao meu comensal que eu era um eleitor de plataformas de esquerda, ou como se diz no bipolar Brasil atual, um “petista”. Foi suficiente para o sempre sorridente político fechar a cara e gritar contra mim. Acusava-me de ser corrupto, mesmo que eu não tenha participação em nenhum caso de desvio de recursos. Perguntava agressivamente como eu podia ter uma posição errada dessas e eu não compreendia, uma vez que foi justamente ele que passou a tarde confessando variados delitos e ainda se disse conhecedor de maracutaias futebolísticas com a maior naturalidade. Depois dessa reação explosiva, o intrigante personagem não dirigiu mais a palavra a mim. Ficou na dele, até porque também franzi o cenho, uma vez que nunca é uma experiência agradável ter alguém berrando na sua cara. Notei, inclusive, que ele passou a cuspir no chão a intervalos regulares, talvez como uma maneira adicional de manifestar seu descontentamento sem ter que se rebaixar a dirigir a palavra a mim.

Depois, contei a um amigo advogado sobre o episódio e ele me apontou que um agente público, de qualquer esfera, que tem conhecimento de alguma ilegalidade cometida, deve, segundo a Constituição, denunciar o caso e contar tudo o que sabe para as autoridades. Caso não o faça, passa a ser considerado automaticamente cúmplice, ou seja: um criminoso. Olha só que bela reviravolta na história toda. Ao fim e ao cabo, o vereador do interior só estava sendo coerente consigo mesmo, fazendo jus ao próprio nome. Porque, afinal de contas: carrapato é parasita, né verdade?

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