A estupidez de um desembargador em tempos de Covid
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A estupidez de um desembargador em tempos de Covid

21 de julho de 2020
A estupidez de um desembargador em tempos de Covid

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No último final de semana, em Santos-SP, uma cena deprimente ganhou o olhar da mídia e repercutiu nacionalmente, demonstrando mais um capítulo da insensatez e de estupidez explícita, em tempos de Covid-19. Ao ser abordado em via pública por uma viatura da guarda civil metropolitana, por não estar portando máscara, o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do TJ de São Paulo, valendo-se da mais profunda arrogância, falta de noção, ausência de responsabilidade, senso cívico e completo desvio de caráter, desacatou agentes públicos no pleno exercício de sua função legal, telefonando para o secretário de segurança do município, e recusando-se a usar máscara, ao insultar o guarda Cícero Hilário, chamando-o de “guardinha” e “analfabeto”. Irritado, e num gesto repugnante, o magistrado rasgou o recibo da multa de cem reais que lhe foi atribuída, e continuou seguindo seu caminho, sem utilizar máscara.

Essa diferenciação funcional forçada, baseada no velho jargão popular do “sabe com quem está falando”, foi estudada em profundidade há décadas, na célebre obra: “Carnavais, malandros e heróis”, do antropólogo carioca Roberto Damatta. Lançado originalmente em 1978, o livro de antropologia e psicologia social retrata essa herança colonial brasileira de querer exercer ou afrontar o direito de alguém através do pertencimento a alguma classe, casta ou estamento. O desembargador paulista, no auge de sua empáfia, por conta de sua condição social, achou normal descumprir regras mínimas e básicas de prevenção durante uma pandemia, expondo demais pessoas ao risco de contaminação, contribuindo para um crime contra a saúde pública, além de desrespeitar um agente público. Não se trata apenas de menosprezar a ação de um servidor da segurança pública, e da humilhação de um trabalhador e pai de família. Trata-se do menoscabo pela própria função policial a contribuir para os serviços de saúde pública, na proteção de vidas; e mesmo do desrespeito à própria função jurisdicional, a qual o desembargador Eduardo Siqueira, comprometeu-se a exercer, assim que foi investido na magistratura.

As lições obtidas com a pandemia do coronavírus tem servido para os brasileiros e para o mundo não apenas como aprendizado sobre padrões sanitários, regras de conduta para a preservação da saúde e recados para a economia, mas também como fixadoras de limites éticos. O aprendizado ético, conduzido pela racionalidade, nos faz ver verdadeiramente os mocinhos e os bandidos dessa pandemia, e observar como algumas pessoas, já no começo da contaminação, demonstravam todos os seus cacoetes morais, seu mau caratismo, desonestidade, egoísmo ou mesmo, simplesmente falta de empatia. Uma autoridade se valer de sua condição, dando carteirada, para tão somente humilhar o outro, para abusar de um direito que acha que tem, é grave porque não se trata de um desvio individual, mas sim de um traço cultural, algo inserido, infelizmente, na cultura brasileira e ainda não expurgado. O fato de discordar de decretos municipais ou estaduais sobre regras de prevenção ao vírus, não dá a ninguém o direito de desrespeitar a lei, famigerar o bom senso ou expor a saúde dos outros a perigo. Talvez o fato do Brasil estar passando agora por uma pandemia tão violenta e profunda, sirva para mostrar essa terrível peculiaridade cultural, e demonstrar o quanto, nós, brasileiros, talvez não sejamos assim tão civilizados. Afinal de contas, “você sabe com quem está falando??”. Certamente, no cotidiano, muitos já devem ter visto e ouvido, ou até mesmo alguns (talvez agora envergonhados ou não) tenham feito isso e proferido tal frase, em algum momento da vida. Nessas horas, será que realmente existe a igualdade de todos perante a lei, defendida pelo texto constitucional?

Desacato ainda é crime, previsto no artigo 331 do Código Penal, e como crime assim deve ser apurado. Cabe ao Conselho Nacional de Justiça a responsabilização do magistrado, mas também cabe à sociedade brasileira, ao menos no seu segmento mais sensato e que não corrobora com tais condutas, recriminar e destinar à execração pública, a conduta do desembargador Siqueira. É necessário que as tristes cenas de tal fato sejam passadas aos nossos filhos, e que eles saibam, que, independentemente de cor, credo, raça, gênero ou classe social, estúpidos são estúpidos, e eles não podem estar acima da lei!

Nós, do Movimento Policiais Antifascismo, através do seu coletivo no Rio Grande do Norte, repudiamos totalmente a conduta do desembargador Eduardo Siqueira e de qualquer outra autoridade que, fugindo de sua responsabilidade perante a crise que vivemos na pandemia, valham-se da sua condição para burlar a lei e subjugar quem quer seja. A empáfia, arrogância e tirania do “sabe com quem está falando” também é um dos traços do fascismo, e é contra esse fascismo que adotamos nosso nome e nos insurgimos diariamente, convocando a sociedade para a nossa luta. Afinal de contas, se todos são iguais perante a lei, “QUEM VOCÊ PENSA QUE É? ”. Contra o fascismo, sem piedade, sempre!

* Fernando Alves é Delegado de Polícia e coordenador do Movimento Policiais Antifascismo.

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