A fantasia da riqueza
Natal, RN 28 de mar 2024

A fantasia da riqueza

9 de novembro de 2019
A fantasia da riqueza

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Certa vez viajei com meus alunos a uma mina no Seridó do RN. Após uma visita guiada, observando as condições em que os trabalhadores se encontravam (em uma espécie de evocação literária das imagens de Emile Zola) fomos a um pequeno museu onde o guia nos contou a história do empreendimento. Pelo que se narrou do mito de origem do lugar a primeira rocha contendo o minério a ser explorado no local teria sido encontrada por um vaqueiro que ficou curioso com um brilho estranho por entre as rochas de um serrote na saída da cidade de Currais Novos. O vaqueiro levou a rocha ao proprietário da terra que tinha, salvo engano, um cargo no judiciário potiguar. O aristocrata sertanejo mandou fazer uma análise do material para saber se tinha algum valor econômico e, a partir daí alocou capital para a construção da mina. O curioso é que todo o museu, construído próximo do local onde o vaqueiro havia encontrado a rocha, foi feito para guardar a memória do dono da terra.

Era o empresário-fazendeiro lembrado a todo o momento. Sobre o vaqueiro que teve a curiosidade diante daquela estranha rocha brilhante, não havia muito que meus alunos pudessem registrar em seus cadernos. Nenhuma estátua, nenhuma foto, nenhum nome para a posteridade.

Essa engenharia ideológica que transferiu a função de produção da riqueza dos trabalhadores que viviam nos subterrâneos escuros daquela mina, para a caixa registradora do fazendeiro que enriqueceu com o empreendimento, é uma das mais significativas construções do liberalismo romântico.

Podemos retroceder ao século XVIII para entender como essa engenharia se configurou. Encontra-se entre as ideias de Bernard de Madeville a noção de que seriam os vícios e não as virtudes que impulsionariam o progresso econômico e o consequente bem estar da comunidade. O egoísmo privado e o desejo pessoal de acumular capital empurrariam a economia para um estado de crescimento que promoveria uma distribuição isonômica e natural do estoque de riqueza. Essa noção liberal subverteu a percepção ideológica feudal de que eram os camponeses, e não os comerciantes dos burgos, os grandes responsáveis pela riqueza social.

A fantasia ideológica medieval nos ensinava que os camponeses pobres que comiam carne de gado uma vez por ano no natal e desgastavam suas vidas numa labuta incessante de inverno à inverno nos campos europeus, eram revestidos de uma dignidade superior. Era das mãos desses camponeses que a riqueza social seria produzida e isso certamente seria recompensado na vida futura de bonança que emergiria após a morte do corpo.

O capitalismo demoliu essa estrutura ideológica.

A fantasia que estrutura aquilo que vivenciamos como realidade em uma sociedade capitalista nos diz que o rico é o maior responsável pela riqueza que acumula. É essa fantasia que nos protege da falta de significado do Real e que nos separa da fria contemplação nua dos fatos. Sem ela, o cidadão mediano estaria diante de uma contemplação obscena da falta de significado de sua própria luta enlouquecida pela acumulação de um capital que escorre pelas suas mãos na mesma medida em que flui para o 1% mais rico da terra, em gigantescas correntes financeiras digitais.

Olhando por esse ângulo não é muito difícil explicar porque Donald Trump faz tanto sucesso entre certos setores do eleitorado norte americano, chamados pejorativamente pela esquerda liberal de White trash, composto basicamente por trabalhadores brancos que formam uma classe média empobrecida e em vias de extinção, após mais de trinta anos de aplicação do modelo Reagean-Tatcher, mais conhecido na feira do alecrim com o seu nome de fantasia: “neo-liberalismo”.

Trump é a caricatura do que sobrou dessa fantasia ideológica chamada “sonho americano”, a expressão bizarra da fábula das abelhas de Madeville, o resíduo de uma encenação meio grotesca posta no palco por uma sociedade que fetichiza a riqueza e que produz com isso um sentimento intenso de ansiedade em relação ao próprio empobrecimento.

Neste ambiente ideológico, se por um lado o sucesso financeiro é visto como o sinal de uma dignidade superior, produto de uma competência natural do rico em enriquecer; por outro lado, a pobreza é tomada como o sinal de uma marca vexaminosa de fracasso. O empobrecimento é o sintoma da fragilidade do sujeito que sucumbiu às próprias virtudes e acabou prisioneiro das sombras miseráveis de uma condição imposta por sua própria incompetência.

Alexis de Tocqueville em suas viagens pelos Estados Unidos no inicio do século XIX, identificou um dos efeitos mais espantosos dessa fantasia ideológica. Na América democrática como os impedimentos de casta e classe teriam, em tese, sido abolidos pelas revoluções liberais, todo homem comum havia sido instruído a pensar que teria um destino extraordinário. Essa ilusão de uma grandeza acessível a todo cidadão, esse sentimento de que o enriquecimento é uma promessa a ser cumprida para os mais capazes, seria facilmente desmentida pela experiência particular de cada um na medida em que qualquer nível de desigualdade, por menor que fosse, seria sinal de algum fracasso relativo de alguém em relação a outra pessoa, mais bem colocada na cadeia alimentar do capital.

O efeito mais perceptível disso era a constante inquietação, a eterna perturbação, a insuperável ansiedade em busca dos menores sinais de destaque e distinção social. O que espantava Tocqueville é que quanto mais ricos os norte americanos pareciam, mais ansiosos, insatisfeitos e apavorados se tornavam.

Depois de 30 anos de hegemonia do tal “neoliberalismo”, os norte americanos agora se encontram diante do empobrecimento de uma geração que vê sua qualidade de vida despencar em relação a geração de seus país e avós. Essa percepção assustadora da falência de sua própria fantasia ideológica é lida na maioria das vezes como um sintoma do desmoronamento do Real. Por isso é fácil entender o papel de Donald Trump na política norte americana. Ele é a sobra caricata da grande fantasia ideológica que estruturou uma realidade que cada vez mais parece dissolver-se na poeira de um sonho romântico, desertificado pela ação impiedosa da história. Um resíduo que retorna como farsa, mas que tem o inquietante potencial de se transformar em tragédia.

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