A jangada
Natal, RN 24 de abr 2024

A jangada

15 de agosto de 2020
A jangada

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Tenho revezado meu isolamento social entre ser habitante da minha caverna natalense e agregado na casa de um casal de amigos em Genipabu. Creio que seja meio complexo para nós potiguares, sermos indiferentes ao mar, não à toa a figura que habita o centro flamejante de nossa bandeira. E hoje, embalado pelo Atlântico e embriagado dele, falarei não de uma receita ou ingrediente, e sim de uma figura primária em relação a isso.

Chico de Mathilde, no final do século XIX, liderando outros jangadeiros, impediu o transporte de escravos entre o porto de Aracati e o Rio de Janeiro. Esse gesto se somaria a outros tantos, resultando um adiantamento de anos da abolição da escravatura no Ceará em relação ao resto do país.

O nome de nossa conhecida embarcação é indiano. “Jangada” deriva da palavra “jang”, que era a pequena embarcação a vela que Vasco da Gama viu nos portos ao finalmente chegar nas Índias orientais. No entanto, o navegador europeu a chamou de “jangá”, termo em seguida usado de forma generalizada para denominar barcos pequenos a vela pelos confrades lusitanos.

Nos idos do século XV e XVI, as jangadas começariam sua jornada de virar símbolo da cabotagem nas praias do Nordeste. Não, os portugueses não trouxeram as jangadas de Calicute, apenas denominaram as embarcações engenhosas dos nativos de cá (Igapebas) com aquilo que já conheciam (como fez Pero Vaz de Caminha ao identificar a mandioca como inhame), e sendo as daqui maiores que as de lá, foram chamadas de jangadas, jangas grandes.

A magia da jangada é a vela triangular com a sua “barriga na ponta de cima” (vértice superior côncavo) que permite a navegação contra o vento. Vale o registro que o tecido mais utilizado para a fabricação das velas de boa parte do Brasil colônia era a fibra de cânhamo. Então, a jangada significava agilidade e uma relativa segurança no material que era utilizado em sua concepção.

Certo dia, muito cedo, fui chamado para um ‘arrasto’ na beira da praia. Beradeiro que sou, logo estava na beira do mar de Genipabu “espantando os peixes”, como logo me foi dito, ao querer ajudar de alguma forma.

Eram duas pessoas apenas, entrando e saindo do mar com a rede, e um senhor observando com cara de negação. Logo percebi que meu papel ali seria de observador e, depois, narrador de algo. Nesse momento o expectador me fala com a voz cheia de experiência: “Tão fazendo errado, aaah, desse jeito não pega nada. Tem que entrar de verdade. Quer ver? ”. E logo que tomou seu posto na rede entrou no mar a uma altura que eu achava impossível pessoas entrarem “andando”.

Se tratava do seu Luís Caraúna, seu filho e neto. Três gerações de gente do mar fazendo a sua “colheita”. Aí eu percebi que dali sairia história. Marquei uma entrevista e demorei algumas semanas refletindo sobre quais as perguntas que eu faria. Para não ser prolixo, a entrevista aconteceu e não me aprofundarei nela nesse momento, mas não posso deixar de pontuar algumas coisas.

O foco da prosa não poderia ser outro que não a comida. Sabia que ele tinha muito para falar, afinal, gente como seu Luís foi e é responsável por boa parte da alimentação do povo da extensa faixa litorânea do RN. Quantidade infinita de nomes de peixes me foi dita, com forte etimologia indígena, bem como seu biotipo.

Me emocionei ao ver seus olhos brilharem quando lembrou do arroz doce de coco de sua sogra, ou quando ele falou dos companheiros que perdeu para os navios que partiam no meio das jangadas, ou quando disse que um tio foi buscá-lo depois de um naufrágio na praia de Touros.

Mas o que mais me tocou foi a forma como ele se referia ao mar, com um agradecimento imenso, como o mar merece que a gente sempre faça. Desde as baleias, tubarões e escuridões enlouquecedoras, até os ventos mortais de agosto e o escaldaréu (cozido de peixe e água do mar) com sangue de albacora feito no meio do oceano.

Me relatou da quantidade de gente que fugiu do mar para criar gado no sertão e depois voltou para a praia quando a seca chegou. Falou-me que uma família inteira de retirantes morrera por comerem baiacu cozido. “Na praia só passa fome quem quer, mas tem que saber o que comer”, disse pensativo.

Desde criança as jangadas de Tibau e Grossos habitaram meu imaginário, mas nunca os jangadeiros, a força motriz do sonho humano de andar sob as águas. Por que essa figura, do homem simples do mar, tão importante na nossa construção cultural, é apagada de forma tão covarde e ingrata de nossa história? Afinal, do que é feito a nossa gente?

Essa gente que tenho a sensação que sempre esteve por aqui, das Emanuelas até o Sagí. Entrando no mar, deixando viúvas e órfãos, se arriscando para comer e alimentar, os seus, os meus, os nossos. Esse povo que come e dança coco. Por que não uma ode aos jangadeiros potiguares?

Chico de Mathilde, por sua bravura virou estátua, navio e praça. Tornou-se o Dragão do mar. Tal bravura corre junto com a água, vento e sal, nas veias de gente como seu Luís Caraúna: dominador das marés de Netuno e Iemanjá, devoto de São Sebastião e Nossa senhora dos Navegantes, que alimentou doze filhos, do mar. Afinal, do que é feito a nossa gente?

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