A linha de frente do combate à Covid-19 no Nordeste é feminina e tem baixos salários
Natal, RN 29 de mar 2024

A linha de frente do combate à Covid-19 no Nordeste é feminina e tem baixos salários

26 de abril de 2020
A linha de frente do combate à Covid-19 no Nordeste é feminina e tem baixos salários

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Por Luana Myrrha, Jordana de Jesus e Karina Meira, do ONAS-Covid

Cada vez mais as mulheres vêm se inserindo no mercado de trabalho em diferentes ocupações e investindo em capacitação por meio do aumento da escolaridade. Em média, elas já são mais escolarizadas do que os homens, mas ainda recebem menores salários. Historicamente, as mulheres ocupam com maior frequência postos de trabalho que, de alguma maneira, reproduzem o trabalho realizado dentro de casa, como cuidado de crianças, idosos e com os domicílios.

Dessa forma, elas são maioria no emprego doméstico e nas ocupações das áreas de serviços, educação e saúde.

Em análise anterior no ONAS-Covid19 já se demonstrou que o grupo de profissionais expostos diretamente a Covid-19 na região agrega 221 mil trabalhadores e é composto majoritariamente por mulheres (elas correspondem a quase 80% dessa força de trabalho). Outro resultado apresentado foi a distribuição desses profissionais por tipo de ocupação, sendo as mais frequentes as de técnicos(as) de enfermagem, recepcionistas, trabalhadores(as) de serviços de apoio, enfermeiros(as), auxiliares de enfermagem e médicos(as). Juntas, essas categorias representam 78% de todos profissionais que realizam atividades com maior exposição ao risco de contaminação por Covid-19.

A Figura 1 apresenta a pirâmide etária de cada uma das ocupações mencionadas anteriormente. Exceto no caso dos médicos, a maior frequência das faixas roxas em todas as ocupações evidencia o quão expressivo é a mão-de-obra feminina na área de saúde. Interessante notar que entre os enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, o percentual de mulheres é ainda mais elevado do que a média, contabilizando cerca de 85%. Apenas entre os médicos, os homens são ligeiramente mais frequentes (55%).

Figura 1 | Distribuição etária e por sexo de trabalhadores com vínculo ativo a algum estabelecimento de atenção à saúde humana segundo o tipo de ocupação, Nordeste. Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2017)

As mulheres são maioria nas ocupações da área de enfermagem, recepção e apoio. Áreas que no setor de saúde são as mais precarizadas, pois estão associadas às atividades de cuidado aos usuários dos serviços de saúde, limpeza, transporte dos pacientes, organização do fluxo de atendimento, entre outras.

Ademais, os profissionais de enfermagem constituem a maior força de trabalho em saúde e, no entanto, são historicamente desvalorizados com baixos salários e alta carga horária de trabalho.

Historicamente, antes do surgimento do hospital moderno (tal como se conhece atualmente), as atividades de cuidado dos doentes eram relegadas às pessoas que buscavam algum tipo de redenção. No contexto da época, por exemplo, para se redimir de pecados, como a prostituição, a penitência seria cuidar dos enfermos.

Com isso, até hoje existe uma dualidade na forma como a profissão é percebida pelas pessoas. Ora com erotização, ora como atividade de devoção, as percepções prejudicam a carreira. A concepção que associa a atividade profissional da enfermagem como devoção se torna um complicador, pois contribui para que os profissionais da área se vejam obrigados a naturalizar e aceitar as más condições de trabalho, além de dificultar a luta por melhores salários, infraestrutura, equipamentos de proteção individual, local para repouso e alimentação.

Outra informação importante que se depreende da Figura 1 é a estrutura etária mais envelhecida dos auxiliares de enfermagem e dos serviços de apoio em relação às demais ocupações. Ambas as categorias apresentam um grande contingente de profissionais com mais de 40 anos: entre os auxiliares de enfermagem esse montante corresponde a 60% e entre os ocupados nos serviços de apoio a frequência é de 46%. Considerando que as pessoas com mais de 40 anos já apresentam tendência maior de desenvolver comorbidades que podem agravar o adoecimento pela Covid-19 (doenças cardiovasculares, diabetes mellitus, doenças do aparelho respiratório, etc), pode-se inferir que na região Nordeste essas categorias estão em maior risco de adoecimento e de morte. Esses indivíduos deveriam ser afastados de contato direto com os pacientes com Covid-19. As demais categorias, por sua vez, apresentam um estrutura etária adulta-jovem, com concentração de pessoas nas idades entre 30 e 39 anos. Os recepcionistas e os médicos são os que apresentam a estrutura etária mais jovem.

As estatísticas recentes dos profissionais de saúde contaminados pela Covid-19 são assustadoras. Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), até 17 de abril de 2020 somavam-se 4 mil profissionais afastados pela doença, sendo 552 deles com diagnóstico confirmado (14%) e mais de 3,5 mil suspeitos.

Até o dia 10 de abril foram notificadas 16 mortes decorrentes da Covid-19 em profissionais de enfermagem que, como reflexo da maior participação feminina nesse tipo de atividade, eram em sua maioria mulheres. Além disso, metade delas tinha pelo menos 40 anos. Em uma semana houve aumento de 87,5% dos óbitos, que atingiram a marca de 30 mortes. Esses dados escancaram o risco ao qual esses profissionais estão submetidos. Ainda segundo o COFEN, até 17 de abril de 2020 já havia mais de 4 mil denúncias de falta de equipamentos de proteção individual no país todo. Além das diferenças na composição por sexo (Figura 1), nota-se diferenciais expressivos entre os salários pagos nessas categorias. Pelo Gráfico 1 podemos perceber a significativa distância dos salários dos médicos em relação aos demais trabalhadores. Enquanto os médicos percebem a remuneração de R$109,66 por hora de trabalho, os enfermeiros recebem R$ 27,11, os técnicos/auxiliares de enfermagem recebem R$10,73, os ocupados nos serviços de apoio recebem R$7,85 e os recepcionistas recebem R$7,18. A hora de trabalho de médicos é remunerada em valores 15 vezes maiores do que de profissionais com as piores remunerações.

Gráfico 1 | Remuneração média por hora de trabalhadores com vínculo ativo a algum estabelecimento de atenção à saúde humana segundo o tipo de ocupação, Nordeste | Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2017)

Apesar dos salários geralmente serem tabelados em algumas ocupações na área da saúde, ainda há diferença por gênero nas remunerações. No Gráfico 2, é possível visualizar que em todas as categorias (exceto para os enfermeiros) as mulheres recebem em média remunerações menores que a dos homens. Entre os médicos da região Nordeste, percebe-se a maior diferença no salário médio: homens recebem R$9.767,03 e as mulheres R$8.951,57. Ou seja, em média as médicas recebem 8% a menos do que os seus colegas homens. Essa diferença no salário tem relação com algumas variáveis, como a quantidade de plantões que cada um assume e o valor da hora de trabalho de cada um deles. As mulheres, por serem responsáveis pelo cuidado da família e do domicílio, vivenciam uma carga horária de trabalho total bastante elevada, o que as dificultam a assumir plantões com a mesma frequência que os homens. Por isso, elas tendem a dedicar ao trabalho remunerado menos tempo do que os homens, cerca de uma hora a menos por semana. Além disso, a hora de trabalho de uma médica (R$ 108) é menos remunerada do que a hora de trabalho de um médico (R$ 113,56) em quase 5%. Mesmo nos contratos de 40 horas para ambos, as médicas recebem cerca de 10% a menos que os médicos. Portanto, a discriminação de gênero na remuneração para a maioria das categorias é evidente.

Gráfico 2 | Remuneração média de trabalhadores com vínculo ativo a algum estabelecimento de atenção à saúde humana segundo tipo de ocupação e sexo, Nordeste | Fonte: Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2017)

Os dados aqui apresentados evidenciam que na região Nordeste, assim como no restante do Brasil, as mulheres são o grande contingente de trabalhadores dos cuidados e são as mais frequentes nas ocupações com remunerações mais precárias. Mesmo entre aqueles mais bem remunerados, são elas que apresentam salários mais baixos, como é o caso das médicas. Além disso, o grupo de auxiliares de enfermagem e aqueles empregados nos serviços de apoio apresentam uma estrutura etária mais envelhecida, o que pode ser considerado como um fator agravante ao risco de adoecimento e morte para esses trabalhadores. Portanto, seguindo uma tendência mundial, pode-se concluir que a linha de frente do combate à Covid-19 no Nordeste é predominantemente feminina e recebe baixos salários. Essas mulheres, além de cuidarem das pessoas durante seu trabalho, precisam também cuidar de suas famílias, expondo-se não somente de forma individual, mas também seus familiares (crianças, adultos e idosos que convivem e, muitas vezes, são cuidadas por elas). Cerca de 172 mil mulheres no Nordeste se colocam em risco diariamente assim como suas famílias e grande parte delas são mal remuneradas. Essa realidade ressalta a necessidade de valorização desses profissionais não apenas do ponto de vista salarial, mas também das condições de trabalho.

Luana Junqueira Dias Myrrha – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Jordana Cristina de Jesus – Demógrafa, professora do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) 

Karina Cardoso Meira – Epidemiologista, professora da Escola de Saúde e do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

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