A pergunta que se faz é: existe (muito) racismo no Brasil ?
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A pergunta que se faz é: existe (muito) racismo no Brasil ?

24 de novembro de 2020
A pergunta que se faz é: existe (muito) racismo no Brasil ?

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Em Joinville, Santa Catarina, a vereadora eleita Ana Lúcia Martins, primeira mulher negra a chegar a Câmara de Vereadores, foi ameaçada de morte com postagens racistas na internet, onde o agressor (supostamente portador de esquizofrenia), escrevia que ela deveria ser morta para assumir um suplente branco. Nesse mesmo estado da federação, a vice-governadora, e governadora em exercício, Daniela Reinehr, descendente de alemães, tem dificuldades expressas em repudiar os posicionamentos do pai, Altair, professor de história e célebre defensor do nazismo (uma doutrina política altamente racista, que defendia uma raça ariana pura), autor de publicações com literatura antissemita e negadora do holocausto. Em Porto Alegre, o vereador e candidato derrotado à prefeitura da capital gaúcha, Valter Nagelstein (com sobrenome de homem branco europeu, de origem germânica), divulgou áudio para seus apoiadores, reclamando da expressiva votação do PSOL na cidade, que havia eleito, de forma inédita, dois vereadores, de uma bancada de cinco mulheres e um homem negros, afirmando que a primeira bancada negra na Câmara de Porto Alegre era formada por pessoas “sem nenhuma tradição política, sem nenhuma experiência, sem nenhum trabalho e com pouquíssima qualificação formal”. Em Alfenas, interior de Minas Gerais, o padre Riva Rodrigues de Paula sofreu injúria racial dos próprios fiéis da igreja, após ter sido designado o primeiro vigário negro da Paróquia São José e Nossa Senhora das Dores, tendo que escutar de um casal se ele “era o padre preto fedido que ia celebrar a missa de novo” ou que deveria ser avisado quando o padre celebrasse a missa, porque o povo da cidade não gostava de negro.

Entretanto, talvez o caso mais chocante e que mobilizou a atenção da opinião pública nacional foi a morte do soldador aposentado e homem negro, João Alberto Freitas, mais conhecido entre os amigos e parentes como Beto, que, aos 40 anos, encontrou a morte após ser detido e espancado por seguranças no supermercado Carrefour, em Porto Alegre, por conta de uma discussão com funcionários do estabelecimento. As cenas do espancamento e morte, filmadas por transeuntes, onde, entre gotas de sangue, um desesperado João Alberto, imobilizado pelos seguranças no chão, luta para respirar, foram divulgadas à exaustão nos meios de comunicação e não deixam de lembrar a morte em condições semelhantes de outro homem negro, George Floyd, nos Estados Unidos, no ano anterior. Era véspera do dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e a data, ao menos no Brasil, parece ter sido marcada menos por comemorações de celebração da diversidade racial, e mais por protestos e pela lamentação de uma trágica morte, que só colocava na boca de quem interpela a seguinte pergunta: se João Alberto fosse branco, teria sido agredido, chutado, socado e estrangulado por seguranças até morrer?.

Define-se como racismo estrutural a forma de preconceito por conta da cor da pele ou etnia de alguém que, diferentemente do racismo institucional (mais evidente porque consolidado em decretos e leis do Estado), é mais brando que as formas explícitas de racismo, mas está presente nos costumes de um povo, seja pela prática de atos, hábitos, falas ou situações que fazem deduzir uma forma de exclusão ou segregação. É muito comum no uso de expressões populares, como “nego”, “neguinha” ou “moreno”, por meio de piadas, quando se fala “coisa de preto”, “pretice”, ou “preto quando não faz na entrada, faz na saída”, ou por meio de eufemismos, quando se recusa alguém no emprego em uma empresa em virtude de seus cabelos crespos ou trançados, por conta da chamada “boa aparência”. Em todos esses casos o racismo pode aparentar ser superficial ou velado, mas em todas as situações ele produz os mesmos efeitos deletérios e perversos do racismo institucional do apartheid. É o racismo com que convivem milhões de brasileiros, reconhecidos no último censo como pretos ou pardos e também em menor escala os de origem indígena.

Talvez uma das primeiras grandes obras que sintetiza a desigualdade racial no Brasil tenha sido “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, publicada pela primeira vez em 1933. Horrorizado com a segregação entre brancos e negros nos Estados Unidos, onde residiu por dez anos, Freyre era um ardoroso defensor da mestiçagem, afirmando que a miscigenação no Brasil era intensa, e por conta disso, cada brasileiro carregava na sua formação um pouco do branco português colonizador, do negro e do indígena, não se podendo falar num racismo à brasileira, pois seria contraditório o racismo num país que fez da mistura de raças sua identidade nacional. De fato, apesar do conservadorismo e machismo implícitos na obra do famoso sociólogo brasileiro, ao afirmar na necessidade do poder patriarcal do “Senhor da Casa Grande” em detrimento do negro da senzala, não se pode dizer que a obra de Gilberto Freyre seja racista, apesar dele legitimar pragmaticamente a escravidão, pois, segundo ele, não haveria alternativa para fazer prosperar a economia no Brasil colonial, se não fosse por conta da mão de obra negra escrava, já que os índios não se deixavam subjugar.

Fazendo um contraponto, outro grande pensador brasileiro, Darcy Ribeiro, enfoca o racismo de forma diferente. No seu livro, “O povo brasileiro”, ele afirma que os primeiros negros escravizados que vieram para o país, assumiam formas de resistência semelhante a dos índios, que se recusavam a se escravizar, fugindo do cativeiro e se organizando, por meio da luta armada, em quilombos, tendo o de Palmares como sua maior expressão. Depois de quase um século de resistência, onde ajudaram a propagar o idioma português, após assimilar a língua e difundi-la pelos grotões do país, os negros outrora escravizados foram beneficiados pela abolição em 1888, mas também se viram largados à própria sorte, com a importação de mão de obra estrangeira, quando os primeiros imigrantes assumiram o lugar dos escravos na agricultura e na nascente produção industrial. Desempregados e exercendo a recém-conquistada liberdade, vivendo em ocupações rurais na agricultura de subsistência, onde viriam a ser posteriormente expulsos, os negros no Brasil e seus descendentes passaram a viver a via crucis da exclusão social, passando a constituir a maioria do contingente dos denominados economicamente pobres no país. Não é à toa que Ribeiro defendia uma democracia social, com a eliminação do distanciamento entre ricos e pobres como uma forma de solucionar a desigualdade de raça no Brasil, confundindo-se muitas vezes as lutas raciais com as lutas sociais.

De fato, a luta antirracista no país é antiga, assim como antigos são os grandes personagens da história nacional afrodescentes, que ostentavam a negritude na pele. José do Patrocínio, um dos patronos do abolicionismo, é um exemplo disso, assim como Machado de Assis, que, por sua vez, era mulato. Cruz e Souza exortava a negritude em seus poemas. No âmbito da política, o ex-deputado comunista Carlos Marighella, assassinado a tiros na ditadura, para a direita era considerado um terrorista, e para a esquerda um herói revolucionário, mas, era, em verdade, outro mestiço da pele escura, filho de mãe negra, neta de escravos e pai imigrante italiano. Recentemente, como uma forma de atenuar, pelo caminho da ascensão social, a desigualdade de raças, o sucesso pelo qual desfrutou no esporte e na vida empresarial, um certo Edson Arantes do Nascimento, eternizado no mundo inteiro como Pelé, parecia fazer convergir a mestiçagem de Gilberto Freyre com a democracia social e racial de Darcy Ribeiro. Será que, diante disso, ainda se poderia falar que o Brasil é um país racista?

Diante dos protestos de manifestantes ligados ao Movimento Negro que eclodiram em todo o país, no último final de semana, parece ser sim a resposta. Diante de uma imprensa que passou a repercutir não apenas o caso de João Alberto, mas também de dezenas de relatos e testemunhas de discriminação racial, o vice-presidente, Hamilton Mourão limitou-se a dizer que não existia racismo no Brasil. Na cúpula do G-20, em reunião virtual, o presidente Bolsonaro também chamou atenção, mas, como sempre, de forma negativa, ao criticar os protestos antirracistas em sua fala desastrosa, sem, contudo, dizer uma palavra de condenação quanto ao assassinato da vítima.

Dizer que não existe racismo no Brasil é o mesmo que dizer que não existem gays, lésbicas ou transexuais no Irã ou na Coréia do Norte. Negar um racismo recorrente, apesar de velado, é a alternativa hipócrita das piores ditaduras, travestidas de democracias. Pôde-se ver o mito da igualdade racial miscigenada, no discurso do presidente brasileiro, mas, por debaixo da narrativa, descobre-se um Brasil racialmente mesquinho, que mantém à margem da direção de grandes empresas e da cúpula de cargos no serviço público milhares de afrodescendentes, sob a desculpa de uma falaciosa meritocracia. Onde está o mérito em negar e manter o racismo? Enquanto muitos, da pele clara, mentem sobre sua cor ao assinar opções de acesso à universidade, para preencher cotas, alegando que teve avós ou bisavós da pele negra, poucos entendem que o racismo não se dá por uma questão biológica ou antropológica, mas sim por razões eminentemente políticas. Afinal, subjuga-se alguém pela raça não por seu pertencimento exclusivo a um grupo étnico, mas sim por relações de poder, de dominação. Por conta disso a lógica entre dominantes e dominados acompanhou a lógica da dominação racial no Brasil, com a diferença de que, ao contrário do modelo norte-americano, onde a divisão era explícita, no modelo cordial e miscigenado brasileiro, a divisão de raças era cozinhada em banho-maria, num acordo silencioso de dominadores com subjugados, intermediado pela mestiçagem. Assim, manteve uma suposta harmonia, uma tranquilidade de fachada, até que casos de violência cada vez mais extremos contra boa parte da população negra e pobre, passaram a chamar atenção, a ponto de serem denunciados não só no país, mas internacionalmente.

Chama a atenção, portanto, em que, num Brasil em que o presidente e o seu vice negam o racismo, centenas de casos se perpetuam na crônica social (e policial) brasileira todos os dias. É fácil de encontrar nos dias de hoje, qualquer pessoa da pele escura, que, em sua vida adulta, já relatou ter passado, ao menos uma vez na vida, um caso de constrangimento por conta de sua condição racial. Em um país que tem um governo onde prepondera a prepotência, a ignorância, o negacionismo, o machismo e a xenofobia, não resta dúvida que caberia um espaço para o racismo. Os racistas brasileiros parecem ter se empoderado com Bolsonaro no poder, saído de suas tocas e verem a luz do dia, ao menos na internet, pela proliferação de perfis falsos ou não, de um exército de trolls, que invadem as páginas de sites na internet com os comentários mais toscos possíveis, de um deslavado racismo, ao considerar como oportunismo esquerdista ou “mimimi” todos os protestos da luta racial no Brasil. Com o governo de Bolsonaro, chegou-se ao cúmulo de se ter um presidente da Fundação Palmares, o jornalista negro Sérgio Camargo, colocado na função de um negro que odeia outros negros, ao retirar o Dia da Consciência Negra do calendário de comemorações da entidade este ano, além de ter retirado nomes célebres das homenagens a brasileiros ilustres da pele negra, como Gilberto Gil e Elza Soares. Na sua função de ser um representante institucional dos negros no Brasil, Camargo limita-se a bajular seu chefe nas redes sociais, tentando demonstrar o quanto o presidente não é racista, pois, afinal, tem sorridentes empregados negros, além de tirar fotos com o deputado Hélio Negão, outro negro bolsonarista que, em sua mudez, sempre ao lado do presidente, parece muito mais um capataz ou adereço na condição de negro dominado diante do senhor branco dominante, do que da de um parlamentar, aliado de um chefe de Estado. No Brasil do bolsonarismo, os capitães do mato agora andam de terno e gravata e ocupam cargos públicos.

Enquanto isso, presos em flagrante por homicídio, os seguranças do Carrefour, algozes de João Alberto, aguardam a conclusão do inquérito policial, que apura as circunstâncias da morte do soldador. A delegada da Divisão de Homicídios, responsável pelas investigações, adiantou à imprensa que não via conotações raciais no crime que resultou na bárbara morte de Beto. De fato, o racismo estrutural é difícil de ser visto; mas nada impede de conceber raízes raciais primitivas no inconsciente coletivo, diante de um crime que tomou conta do debate público no Brasil nos últimos dias. Trabalha-se a tese de que a vítima já era conhecida dos seguranças, e tinha um histórico de criar confusão com os funcionários do estabelecimento. Isso seria motivo para matá-lo? Afinal de contas, imagina-se a hipótese de ser João Alberto branco, de origem europeia, como muitos dos que herdam essa descendência na pele, por conta de sua ascendência de imigrantes no sul do Brasil, e se, nessa condição, mesmo sendo um cliente impertinente, seria ele hostilizado, espancado e assassinado da forma que foi, se branco fosse. Em um Brasil historicamente acostumado a trucidar os seus negros, o soldador aposentado assassinado seria apenas mais um da estatística, que, se não foi morto pela polícia, foi agredido e teve o mesmo fim mortal nas mãos de seguranças privados. Em mensagens nas redes sociais, percebe-se que o Carrefour já tem um extenso histórico da ação truculenta de seus funcionários de segurança, em sua maioria contra pessoas da pele escura, afrodescendentes. Seria só coincidência?

Na sua dimensão estrutural, o racismo no Brasil pode ser exercido de múltiplas formas e diversos mantos, seja como um fator motivador implícito para homicídios, seja por meio de outro assassinato: o de reputações. Quem não se lembra do desastroso comentário da desembargadora Marília de Castro Neves, que lhe rendeu um processo, ao afirmar um dia depois da morte covarde a tiros de uma parlamentar e seu motorista, que a vereadora do PSOL Marielle Franco, outra mulher negra vítima do racismo, tinha sido morta porque, na condição de parlamentar oriunda e criada na Favela da Maré, a justificativa para seu assassinato teria sido a de ser vinculada a traficantes? Num racismo que perpassa falas, classes sociais e se difunde nas redes sociais, sobra até para a bela e competente repórter Maria Júlia Coutinho, a Maju, da Rede Globo, insultada por muitas vezes na internet, ao assumir a bancada do Jornal Hoje, no lugar de sua colega, a jornalista Sandra Annenberg, aviltada na sua condição de mulher negra ao invés de ser saudada como mais uma profissional competente que ganha visibilidade em um dos maiores noticiários do país. Enfim, se fossemos catalogar um bestiário dos piores casos de racismo no Brasil, poderíamos publicar um encadernado que superaria o volume de muitas enciclopédias. A pergunta que não quer calar: até quando?

Entre o Brasil da “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freire e “O Povo Brasileiro” de Darcy Ribeiro o caminho da discriminação racial é curto e ruinoso. Resta a lição para novas gerações de homens e mulheres negras de que o racismo no Brasil não é só um capítulo, mas parte constante e perene da sociedade brasileira a “denegrir” (viram a ironia do racismo explícito dessa expressão em português?) a história nacional. Nos Estados Unidos da América, homens negros como Martin Luther King e George Floyd tiveram que tombar para que o mundo soubesse que vidas negras importam. Quantos ainda tombarão até que o Brasil de Bolsonaro deixe de perpetuar os óbitos de Betos e Marielles enquanto o Presidente da Fundação Palmares tira selfies? Eu, enquanto isso, homem negro, espero de meu semelhante, seja ele branco, negro, indígena ou asiático apenas uma coisa: respeito. Respeito pode salvar vidas, porque, realmente, vidas negras importam! E como importam!

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