A pluralidade de Celso da Silveira
Natal, RN 20 de abr 2024

A pluralidade de Celso da Silveira

16 de agosto de 2021
A pluralidade de Celso da Silveira

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Já faz algum tempo que me dedico, com entusiasmo, ao circuito de comunicação em torno dos livros. Fascina-me pensar na rede de funções e papeis que, ainda que muitas vezes “invisível”, faz chegar às mãos de leitores esse ente apaixonante chamado livro. Mais do que a simples relação entre autores e editores, há uma gama de figuras (distribuidores de papel, revisores, diagramadores, gráficos, resenhistas e divulgadores, livreiros e sebistas, dentre outros) que faz um livro se concretizar enquanto objeto cultural, objeto esse cuja historicidade muitas vezes a gente nem imagina existir.

Acerca desse circuito, já tratei de alguns aspectos, tais como a relação recorrente e íntima entre boemia e letras ou ainda a existência de autores que também se tornaram editores. Na esteira dessas duas dimensões, vou propor aqui e agora uma pequena tese (mas que também acompanha minhas elocubrações intelectuais há tempos): a da pluralidade de figuras discursivas ligadas ao livro a partir de uma mesma individualidade.

Algo mais ou menos assim: certas pessoas têm uma relação tão radical e intensa com os livros que não se restringem a uma única discursividade, exercendo assim múltiplos papeis no circuito de comunicação livresco. E tomo como argumento um exemplo que merece toda nossa reverência: Celso da Silveira (1929-2005).

Jornalista de formação e profissão, Celso foi não só autor (de verso e prosa), mas também revisor, resenhista e editor. E mais: sua pluralidade acabou por se manifestar, também, na condição de personagem. Comento rapidamente cada uma dessas figuras.

“Tempo de rir” é um dos muitos livros de Celso da Silveira que tratam do humor. Editado por Carlos Lima, tem capa produzida pelos amigos Marcelo Mariz e Nei Leandro de Castro, que também assina a apresentação do livro. Natal, Edições CLIMA, 1984. O detalhe da contracapa parece sugerir, ironicamente, que a “polifonia” de Celso não cabia numa identidade só.

Capa do livro do autor e editor Celso da Silveira. Natal, Boágua Editora, 1995.

Celso da Silveira atuou junto às edições CLIMA (1978-1997) como autor de inúmeros títulos. Quem não conhece, por exemplo, “No reino da Arisia”, reunião de seus 50 haikais todos eles sexuais? Mas a atuação de Celso da Silveira também se fez revisando e apresentando vários outros livros da editora de Carlos Lima, de quem era amigo (o que também remete a outra pequena tese: a de que fazer um livro implica não só um circuito profissional, mas também uma rede de afetividades).

Celso da Silveira não se contentou em atuar como autor e coautor: em 1992, criou a Boágua Editora e pelo menos até 1995 publicou 18 títulos, dentre os quais nomes como Câmara Cascudo, Anchieta Fernandes, Veríssimo de Melo, Jarbas Martins e o próprio Celso da Silveira. Em “Tempo Passatempo”, livro que deu unidade à dispersão de crônicas do “Celsão” na imprensa potiguar, é possível observar não só sua pena afiada como também seu olhar aguçado de pesquisador do mundo e das gentes. Em um desses textos (“Fuga”), ele diz: “Não raro escuto de alguém expressões como estas: ‘fulano parece personagem saído de romance’...”

E é justamente a propósito dessa observação do Celso da Silveira autor que encerro essas considerações sobre a pluralidade discursiva que ele mesmo ensejou por conta de sua relação com os livros: há que se destacar ainda sua “discursivização” como personagem. E acerca disso, seu amigo e parceiro nas edições CLIMA, o escritor Nei Leandro de Castro, é quem lhe dá voz.

Quem leu “As pelejas de Ojuara” sabe que, ao longo da saga do ex-manicaca Zé Araújo, há uma série de referências a nomes da literatura norte-rio-grandense, sejam referências diretas (Moysés Sesyom) ou mais indiretas (como Lula Guimarães e sua indagação “bebe-se nessa casa?” ou Zilá de Castro e sua “ode ao arado”). Nessa segunda linha, surge o personagem Celso da Silva, em cuja representação ficcional há menção tanto à dimensão das letras quanto da gulodice:

Vindo no faro de Ojuara, o pesquisador Celso da Silva chegou à fazenda de Ruzivelte no meio da comilança da manhã. (...) Os vaqueiros pararam de comer e ficaram ouvindo um cantador. Celso da Silva se aproveitou e trouxe para perto dele todas as travessas. Gostava muito de verso, de romance, mas ainda não tinha nascido um poeta que o fizesse enjeitar comida. Tá doido!

Especulações e polêmicas à parte, quero ressaltar que, de maneira nenhuma, trata-se de reduzir a subjetividade de Celso da Silveira a nenhuma dessas figuras discursivas (autor-poeta, autor-cronista, editor, revisor, resenhista, personagem). À maneira como Michel Foucault abordou a questão da autoria, trata-se mais de um “princípio de coerência” do que exatamente uma simplificação de individualidades.

No próximo artigo, volto novamente a esse ser plural, especificamente a partir de um tema que faz minha cabeça e que atravessou muitas de suas obras: o humor.

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