A primeira vez
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A primeira vez

13 de outubro de 2019
A primeira vez

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Assombrado, acuado, escondido, por trás de um poste de luz apagada, vendo a hora surgir o sujeito de cara feia, aquele do juizado de menores  que ficava na porta do Cine Rex,  acompanhado de meu pai e minha mãe para me levar para casa, me tirando do pecado do Beco da Quarentena. Em casa, quem falasse esse nome era certo levar um tapa na boca. Na verdade, na época, imaginava estar naquela noite no proibido Beco (que fica ou ficava entre a Frei Miguelinho e Rua Chile, quase desaguando no Porto), e me  encolhia numa das esquinas das travessas  que levavam os clientes a Tavares de Lira, onde em cada canto tinha um bar. Era minha primeira vez nos labirintos pecaminosos do famoso bairro da Ribeira, local habitado pelo diabo e seus enviados, diziam os mais velhos, nos finais de semana.

Encantado, talvez mais que assustando, ficava  vendo passar as meninas de vida livre, com suas roupas coladas e maquiagens berrantes chamando a atenção dos "fregueses". Paralisado, buscava, não sei onde, coragem para "agir", mas não achava.De vez em quando passavam, em grupos, 'samanguinhos' jovens, recrutas do exército ou marinheiros, que ficavam tímidos, encabulado diante do frisson que causavam nos travestis extravagantes que, também em grupos, giravam pelas calçadas dos bares em busca de um grande, impossível amor. Os militares meninos (tão virgens quanto eu, talvez), notei, ao se cruzarem as forças rivais, mudavam a atitude, tomavam uma postusra rígida no andar, endureciam  o pescoço como em desafio  e, dos dois lados, um olhar duro, ensaiado diante do espelho, copiando as encaradas dos Artistas dos filmes de Hollywood. Era engraçado. Não se provocavam além disso.

A Tavares de Lira e adjacências promoviam um espetáculo tão rico de tipos - gordos, magros, bem arrumados, desleixados, jovens, velhos, gaiato, tímidos, solitários ou em grupos, numa algazarra interminável, a maioria tentando impressionar as meninas de vida fácil que desfilavam, muitas vezes fazendo "docinho" como as mais recatada donzelas. Os que mais me chamavam a atenção eram os gays. Os mais alegres, criativos, bem vestidos, felizes, me pareciam, bem de acordo com o local. Ficava envergonhado, olhava-os de esguelha, temendo que eles notassem minha curiosidade, interesse. A cada pequeno intervalo de tempo bebuns eram expulsos dos botecos, onde enchiam o saco dos fregueses pedindo mais um "trago". Quando na rua, davam espetáculos fazendo discursos apopléticos contra os proprietários, até que a presença da dupla Cosme e Damião os faziam calar.

Um vai e vem alucinado de pessoas chegando, outras saindo, várias mesas ocupadas na Peixada Potengi - ponto mais central e procurado -,  e nos outros bares, casais falavam alto, garçons iam e vinham com bandejas atendendo as moças, quase todas acompanhadas de senhores bem mais velhos, os famosos "gastosos da noite". Um barulho de muitos decibéis na mistura de gritos, falsas declarações de amor e músicas das radiolas de fichas dos muitos locais, predominantemente tocando romântico brega. De repente, que susto! Uma garrafa quebrada, uma senhora gorda, traída,  arranca um senhor, deduzi ser seu marido, dos braços de uma lourona de mini saia que monopolizava as atenções e com quem trocava beijos ardentes e abraços. Ela gritava a plenos pulmões todos os impropérios que se possa imaginar e partiu para cima da moça que saiu correndo, com dificuldade devido ao enorme salto, e subindo uma das escadas que davam para o vários breguinhas das transversais, sumiu no primeiro andar para voltar bem mais tarde. A esposa enganada, vendo escapar a "rival",  continuava a agredir o velhinho e o arrastava pela camisa já rasgada sob gargalhada geral e incentivos, provocando um rebuliço enorme de muitas mesas e garrafas derrubadas. A Polícia chega num fusquinha preto e branco, minhas pernas tremem, saio de fininho e ando, quase correndo, na direção da rodoviária, era como se eles viesse atrás de mim. Distante do barulho e dos soldados, paro, respiro aliviado, naquele momento penso em desistir da empreitada, vou deixar para a semana que vem, próxima sexta eu crio coragem...

Os diabinhos começam a discutir. O branquinho me aconselha a ir para casa, 'chega lá para seus amigos, inventa mais uma mentira das tantas que já contou sobre suas noitadas de amor, pronto, tá resolvido'. O vermelhinho, sacana, me esculhamba, me chama de frouxo, me desafia, e me espoleto. E como sempre acabaria por optar pelo vermelho (menos no futebol, sou alviverde e alvinegro) resolvo ficar. 'Vai ter que ser hoje'. Sentencia o diabinho sorridente vencedor. Volto ao posto. Passo bem devagar no "Bar dos Frescos" (gente, desculpe, mas o local era conhecido por esse nome (fiquei sabendo meses depois). Inocente, nem sabia o que danado se passava ali. Música lenta de Paulo Sérgio na vitrola, luz negra, difusa, só dava para ver quem estava vestido de branco, mas era homem dançando com homem. Admirado, parei na porta e fiquei de boca aberta olhando. Lá dentro, de costas, uma negona linda, retinta, remexendo uma tremenda e perfeita bunda africana me olha por cima dos ombros e, na mesma hora, me lança um sorrisão de dentes brilhantes que cintilam na rouxidão do local. Eita gôta!

Pense num tremelique geral. Ela me faz sinal com o dedo indicador me chamando para entrar. Eu, suando frio, viro o rosto para outro lado, mas não saio do canto.  Ela não desiste e vem ao meu encontro. Chega bem pertinho, quase colando seu corpão no meu. Sinto seu perfume, suave, bem escolhido.

-Oi meu bem, boa noite. Meu nome é Dalvina Lopes, sou cantora da noite. Se você quiser, posso te levar no meu cafôfo e cantar, só para você,  Ângela Maria, Núbia Lafaiete e depois a gente faz um amorzinho gostoso e cobro um preço bem baratinho - propôs.

Nem preciso dizer que fiquei zonzo. Apesar das aparências, do lindo corpo marcado num short colant e de uma blusinha esvoaçante, da maquiagem bem feita, os lábios com um batom bem vermelho e atrepado nuns dez centímetros de salto,  do jeito gentil de falar, a voz era esquisita, metálica, criei coragem para encarar aqueles olhos negros, notei a falta dos seios, mas parei foi no enorme pomo de adão. Jesus! Que susto para um matuto (ainda) que nunca tinha tido experiência no 'Beco da Quarentena'. Era um homem, um travecão de quase um 1.80m de altura, constatei assombrado. Fiquei sem voz ou ação, e quando me recuperei saí correndo, de novo, parecia fugir do próprio diabo em pessoa e sem olhar para trás. Dalvina Lopes, muito conhecida das noites do bairro,  depois ficamos amigos (me ajudou muito no meu TCC), se apaixonou perdidamente por um amigo, não sei se ele correspondia, e sempre que a turma descia para a Ribeira em busca do Arpege, anos adiante,  já malandros da noite, ficávamos batendo papo com a cantora por uns bons momentos. Ela cantava para nós na calçada do Cabaré do Carlinhos, onde fazia ponto, e de vez em quando parava, olhava para nosso amigo, seu amor, e dava um beliscão no bração de academia dele, quase gemendo: "bicho gostosoooooo", gritava, provocando  gargalhada geral.

Voltando no tempo. Quando fugi de Dalvina estava mesmo decidido a ir embora, não tinha jeito, não era para ser, porém, na direção que eu ia, dois soldados da Polícia, PPOs, ocupando espaço na calçada . Atravessei correndo para o outro lado, de tanto medo já parecia escutar os policiais me mandando parar. Continuei. Já estava de novo escondidinho e lembrando das economias que fiz a semana toda. Os trocados que Aparício (senhor da nossa rua) me dava para eu fazer o jogo da Loteria Esportiva dele (disseram a ele que eu entendia de futebol) eu não gastei. Nem fui assistir Tubarão, sucesso no Rio Grande,  já pensando em fazer esse "chafurdo" e de uma vez por todas saber "como era" e, também, claro, parar de mentir. Dava trabalho inventar uma trepada diferente a cada semana para os amigos na esquina. E de novo, o diabinho vermelho venceu a batalha. Mas continuei na penumbra. Uma escada, uma outra moça, dessa vez passei bem perto, era mulher mesmo. Ela sorriu, mas não me chamou. Passei uma, duas, na terceira, não mais estava, fiquei puto com minha covardia, mas ouvi um "psiuuu", era ela. Estava no terceiro degrau da escada, baixando a cabeça me chamava - vem meu lindo! - Era pra rir. 'Meu lindo'. Cabelo escorrido, boca funda, olhos aboticados, magro, só o couro e osso, pernas finas e tortas, cabeças de joelho protuberantes, amarelo de pavor, lindo, sou se fosse...

Agora, tava sem jeito, não tinha mais para onde correr. Era a chance. Ninguém tava olhando. Fechei os olhos, esqueci de minha mãe cantando todos os hinos na igreja do Galo e na Catedral, apaguei da lembrança a cara dura de reprovação de meu pai. Pensei em Hélio Gavião, colega da rua que dizia zombando que eu era cabaço, virgem, afirmando que as histórias que eu contava era mentira. Filho da Puta advinhão, ele ia ver! E fui. Antes de completar a subida da escada a moça me perguntou se eu tinha dinheiro. Respondi que sim e ela mandou me dirigir a um tipo de guichê. - Você paga ali a minha vó meu amor - me disse. Quando olhei pra dentro do retângulo-caixa apareceu o rosto de uma velhota feia, assustadora, até barba a peste tinha.  OIhou pra mim como quem olha um cabide e grunhiu o preço. Já havia me informado, indiretamente, quanto era, micharia contada, sobrava pra comprar um caldo Orós, ao lado da Casa Rio, na Cidade Alta, na volta. Paguei.

A moça me pegou pelo braço e me arrastou para o ninho. Um quartinho apertado, úmido, cheiro de môfo, paredes pintadas (quando?) de uma amarelo desbotado, uma cadeira, uma peça de madeira com um jarro e uma bacia em cima, e a cama, não tinha banheiro. Uma luz mortiça iluminava (?) o ambiente.  No quarto, apesar da luz de cinco velas (acho) muito fraquinha, deu para, agora, bem de perto ver melhor minha escolhida. Seu cabelo não era sedoso, um castanho estragado pelas tentativas de fazê-lo louro. Os olhos verdes amarelados como os de uma leoa, mas mortiços. Testona de " pão doce", pele ressecada denunciando a idade avançada que a maquiagem tentava esconder. Sobrancelhas  bem feitas, nariz grande e puxando na ponta para o bico do Carcará, bocona rasgada, lábios finos e um sorriso forçado, mostrando dentes maus, mas tinha todos. Ou era uma perereca? Acho que não. Tinha um corpão, coxas e pernas grossas que afinavam muito perto dos tornozelos, se fosse hoje diria que era corpo "de academia". Fiquei decepcionado ao ver sua bunda murcha e seus peitos caídos. Coitada! Uma dama da noite visivelmente em final de carreira. Acho que cheguei a notar uma recaída, um amolescimento. Pensei: agora não dá mais para voltar. Notando a mudança, a moça entrou em ação, apagou a luz e começou seu experiente manejo.

Ela foi tirando a roupa rapidamente, mas eu fui mais ligeiro ainda. Alisou daqui, esfregou dali, tava pronto de novo, disposto a entrar em ação . Vuco, vuco, vuco, vuco, menos de cinco minutos tava tudo terminado, não deu nem para suar. Depois do "serviço" feito todos os medos voltaram em dobro. Eu tinha quase certeza que,  lá embaixo, no fim da escada, estava me esperando uma multidão, familiares, policiais e o mal encarado sujeito do  juizado de menores que vivia assustando a meninada ia me prender e chamar meus pais. Minha vontade era sair correndo, chegar na esquina da minha rua, são e salvo. Agoniado, notei que a moça vinha na minha direção coma bacia d´água para o famoso "banho tcheco-tcheco-tcheco-tcheco".

Ela lavou direitinho, confesso, mas a vontade de sair dali era tanta que o "bicho" nem deu mais sinal de vida. A morena ainda me mandou um sorriso falso, alisou meu cabelão, deu um beijo na minha testa e me convidou para vir de novo na semana seguinte, não respondi nada. Desci as escadas de quatro em quatro  tirei em busca da rua, onde já preocupado, só parei para tomar um caldo de cana lá em Zé para espantar qualquer perigo de uma doença do mundo, acreditava.

Aos poucos fui relaxando. Ainda ia dar tempo de chegar na esquina e contar para os meus amigos mais uma sensacional, emocionante, picante trepada do experiente amante da noite, dessa vez com mais detalhes ainda. Quanto mais longe dos "perigos" mais confiante eu ficava, e já dava pulos de felicidade, apesar de nem mais lembrar do momento exato do orgasmo ou do rosto do "meu primeiro amor". Ah, se se meus amigos sonhassem que aquela foi a primeira vez. No fundo, no fundo, lamentava não ter ido assistir Tubarão, tomar um creme  de ameixa na Sorveteria Belém e, depois, quem sabe, ainda dava tempo de ler alguma história picante no banheiro...

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