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8 de novembro de 2020
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Por Maria Clara Pereira Santos

Sinto hoje uma grande necessidade de falar aos marcados, de falar a todos os excluídos por suas diferenças, seja por sua classe social, seja por singularidades biológicas, seja por quaisquer outras singularidades existenciais que lhes tornem diferentes diante do que é colocado como “padrão”. Diferença que se torna um peso quase sobre-humano para todos aqueles que têm suas identidades marcadas pela falta, a falta que é imposta a todos os que são colocados no lugar de fora, por não se assemelharem, não serem entendidos como iguais: representantes do que é instituído como “normal”.

Minha necessidade de falar aos que são obrigados a viver em dor vem não só da minha luta porque faço parte desse lugar de marca, mas por cada vez mais entender que estamos em guerra com a normatividade, contra o estado de barbárie que naturaliza o estupro, o racismo, o classismo, o capacitismo e todos os ismos que representam algum tipo de sujeição de um grupo como efeito do mantimento dos benefícios de outros.

Vamos à exposição das minhas marcas: sou disléxica acadêmica, isso significa dizer que sou uma borboleta que decidiu viver em águas profundas, decidiu usar suas asas como nadadeiras e tornar-se livre não pelo deslizar sobre o ar, mas pelo deslizar sob as águas no oceano acadêmico. Oceano esse marcado pelas correntes violentas oriundas do grafocentrismo. Além dessa deliberação anárquica que por si só já me leva a carregar uma tonelada a cada passo que dou no meu espaço de trabalho, sou filha das camadas populares, interiorana da periferia de Campina Grande, nascida de uma mulher negra e a primeira de sua família a ter curso superior. Elemento que torna meu peso quase incarregável, mas contra todas as correntes aqui estou, doutora em educação, fazendo uma segunda graduação em pedagogia na UFRN e aprendendo cada vez mais a me afirmar como um ser político, um sujeito que ressignifica suas dores e as tornam potência de ser.

Dadas as apresentações de minhas marcas, que me levam a viver um tanto agostinianamente – hipocondríaca em meu estado de ser -, eu volto a dizer aos que vivem em dor pelas suas marcas de exclusão: “uni-vos ”, parafraseando a obra que até hoje nos dá poder de luta, a saber, O manifesto comunista, do sempre marginalizado Karl Marx. Pois só a união tornará possível nossa sobrevivência como seres singulares, só a luta em coletividade tornará possível que construamos um lugar onde a diferença não é marcada pela falta de ser o que não é.

Para aqueles que até agora não estão entendendo meu jogo de metáforas, explicito ainda mais meu “canto torto” que “feito faca” tem o objetivo de cortar a carne de todos aqueles que acham que não levam o peso das marcas que aqui coloco como lugar político. Somos todos diferentes, só que alguns levam essa diferença de forma mais explícita, levam a diferença em seus modos de viver suas sexualidades, de viverem suas estéticas, de tornarem-se mulheres para além dos determinismos patriarcais. Outros diferentes levam suas diferenças como pluralidade biológica, seja por funcionarem cognitivamente diferente, como eu, seja por terem corpos que funcionam de modo diferente, como pessoas cadeirantes, pessoas surdas, cegas, pessoas com algum tipo de deficiência.

Esse viver “com”, seja com “necessidades especiais”, ou com performatividades, pode estar inerente em nós, pessoas que não podem ser outra coisa a não ser esses “outros” que precisam lutar pelo direito básico de existir em uma realidade onde a norma, o comum, o padrão mantém uma ditadura silenciosa que ceifa vidas, que torna muitos vivos mortos-vivos, que torna possível o que o filósofo camaronês Achiller Mbembe conceitua como “devir negro”.

Mas essa ditadura que nos adoece – os que, como eu, não podem esconder suas diferenças –, também adoece você quando lhe prende ao que a cada segundo lhe mata por dentro, tira seus dias de vida quando lhe obriga a viver um modo de ser que já não lhe faz mais sentido, que não lhe traz felicidade e o leva a se entorpecer de múltiplas formas, até mesmo de ódio, indiferença e rancor contra os que não são seu reflexo.

E àqueles que, por outro lado, acham que estão lutando essa luta, pergunto: até que ponto você consegue de fato desconstruir o automatismo que faz você privilegiar seu semelhante? Até que ponto você esconde de si que reproduz o racismo, o machismo, o capacitismo, por achar que não é capaz de fazer tais atos bárbaros? Lhes dou meu testemunho de alguém que está no lugar onde todos dizem que lutam pela transformação social e pela construção de um mundo melhor, mas que em seus atos rotineiros excluem aqueles que não são seu reflexo no espaço.

Até que percebamos que cada um de nós faz parte dessa realidade que tornou possível um indivíduo como Jair Bolsonaro se tornar presidente de nossa nação, que torna possível a existência de um “estupro culposo”, que torna possível o genocídio de pessoas negras, de mulheres e daqueles que fazem parte da comunidade LGBTQ+, até que todos entendamos o que nos cabe nesse latifúndio de dor que marca a todos, nos manteremos perdidos, mutilando uns aos outros e nos automutilando para sermos aceitos, para sermos acolhidos.

E para não dizer que não falei de flores, digo-lhes do alto da minha dor, pessoa que vem sofrendo continuamente o peso da exclusão, que “ainda há tempo”, a qualquer momento podemos mudar, basta que nos abramos para todos esses outros que tornamos invisíveis, que silenciamos, a quem não damos o direito de ser o que é, basta que entendamos que não nascemos prontos e que, para sermos de fato humanos, precisamos acolher nossa inumanidade e a tornarmos um lugar de transformação, um lugar de arte, de criação daquele que nos liberta das dores. É isso que faço hoje ao tornar meu lugar de exclusão grito de liberdade e motor de minha luta.

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