A Sociedade do Medo
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2 de novembro de 2019
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Às vezes costumo a pensar sobre o tipo de impacto que os acontecimentos que se seguiram a morte do rei Carlos I na Inglaterra, no século XVII, devem ter causado no filósofo Thomas Hobbes para que ele se pusesse a escrever seu livro “O Leviatã”. Teria Hobbes experimentado durante a guerra civil inglesa uma sensação semelhante a que os potiguares sentiram no último final de semana, quando uma série de ataques sincronizados a órgãos públicos, supermercados, delegacias de polícia e veículos de transporte público disseminaram pânico na população? Há algo na natureza do nosso medo que difere, essencialmente, da experiência do medo nas sociedades antigas?

Difícil encontrar uma resposta definitiva para uma pergunta como essa. De fato ninguém, como atestava Hegel, consegue ir além do seu próprio tempo. Qualquer reconstrução histórica, por mais “científica” que pareça é sempre uma reconstrução tomada a partir das sobras do passado disseminadas pelo presente.

Apesar disso, há algumas pistas sobre a função do medo na obra de Hobbes que podem nos ajudar a entender um pouco a natureza de nossa própria experiência moderna do terror.

Um lugar comum sobre a obra do pensador inglês é a ideia de que haveria dois estágios nas sociedades humanas. Um estágio natural de barbárie e um estágio artificial de civilização, instituído por um suposto contrato social, por meio do qual indivíduos abririam mão de sua própria liberdade em troca da segurança oferecida pelo Estado. Ao abrir mão da possibilidade de exercemos nossa autotutela, de agirmos de acordo com nossos próprios meios para garantirmos a segurança de nosso corpo e de nossa propriedade, entregaríamos ao soberano o direito de monopolizar o uso da violência.

Como um pai rígido que castiga seus filhos para manter a ordem em casa, o Soberano (um esboço inicial traçado por Hobbes da moderna ideia de Estado) exerceria seu poder de repressão para controlar os impulsos egoístas e mesquinhos dos homens, traços inafastáveis de nossa própria natureza corrompida.

O erro que esse tipo de leitura parece oferecer é a crença de que o estado de barbárie poderia ser superado de alguma forma.

Na arquitetura do Leviatã, o estado de guerra de todos contra todos não desaparecia com a instituição do monopólio da violência pelo Estado. A civilização não supera a barbárie, ela a mantém sob controle.

Como uma sombra permanente, a ameaça da desagregação social constitui-se no mais poderoso cimento político das sociedades liberais. É o medo e sua função estruturante nas modernas sociedades de mercado, que justifica a existência do Estado.

Em um mundo que transformou a feira livre no centro da experiência coletiva e as pessoas se definem como empreendedores de si mesmos, investindo na própria vida, sempre buscando calcular os riscos das suas ações segundo uma lógica empresarial de minimização dos custos e maximização dos lucros; o medo é uma força incontornável.

É ele, o tributo que pagamos para sustentar a ideia de que somos indivíduos buscando preservar nossos próprios interesses em um imenso mercado global.

Ser um indivíduo implica ter interesses próprios, desejos particulares, expectativas pessoais, direitos subjetivos. Ser um indivíduo nos leva cultivar um isolamento radical em relação ao entorno social, à família, a comunidade e ao Estado. Ser um indivíduo, nos leva a conviver com uma sensação de solidão que torna potencialmente ameaçadores todos os riscos normais de uma existência transitória no tempo e no espaço. Não se trata de pensar que na modernidade a vida ficou mais perigosa, que a tensão social saiu do controle ou que as possibilidades de uma morte violenta se tornaram subitamente mais ferozes. É muito provável que hoje, nós, legítimos representantes da classe média tropical, estejamos bem mais protegidos do que nossos antepassados que viviam em comunidades rurais no tempo da Guerra dos Bárbaros ou durante o cangaço; por exemplo.

O que mudou foi nossa desconcertante sensibilidade para as ameaças potenciais que nos cercam. O medo é nosso companheiro. Nosso pathos político fundamental. É o medo, meticulosamente cultivado pelos programas policiais, alimentado pelas redes sociais, disseminado nas conversas de mesa de bar, que nos mantém sob controle. Ele nos aprisiona, nos confina em espaços privados, nos obriga a viver rodeados por cercas elétricas em condomínios fechados, transitando apresados por avenidas congestionadas em direção à shopping centers que nos protegem do traumático convívio com os espaços abertos.

Precisamos do medo para justificar a presença repressiva do Estado e para nos lembrar, o tempo inteiro, que somos solitários em meio à multidão. Boiando como mônadas liberais ensimesmadas, sem nenhuma vinculação ontológica que nos permita cultivar um naco de segurança. Caminhamos sem comunidade, partido, facção, etnia, espaço público de convivência ou suporte social que nos liberte do medo. Neste cenário, só temos a possibilidade de nos entregar apaixonadamente a fantasia de uma repressão estatal que nos liberte de nós mesmos e ponha o outro, esse fantasma aterrorizante, no seu lugar.

Não sei se Hobbes sentiu o medo moderno quando acompanhou os acontecimentos que levaram a Inglaterra à guerra civil no século XVII, mas sua arquitetura filosófica descreveu de modo bastante evidente o tipo de terror que nós, legítimos representantes de uma sociedade de mercado, cultivamos hoje com tanto zelo.

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