A voz da razão é suave
Natal, RN 26 de abr 2024

A voz da razão é suave

20 de junho de 2020
A voz da razão é suave

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Discussões sobre a verdade, os fatos incontestáveis da natureza, são bases da nossa percepção do mundo. Desde o momento em que nascemos e começamos a interagir com o ambiente testamos seus limites. Experimentamos. Cientistas natos, bebês, crianças, mesmo antes da fala, aprendem as leis da física (que só muitos anos mais tarde nomearão como a lei da gravidade, por exemplo). Como seres dotados de capacidade inata de aprendizado por experimentação, criamos a base do método científico, e mantemos em sua tradição a voz da razão.

Mas essa mesma voz racional, na essência da publicação e divulgação da descoberta, guarda uma armadilha sutil: os vieses inconscientes de quem a produz. A geração da pergunta, o planejamento do experimento para responder essa pergunta, a interpretação dos resultados e finalmente a aprovação pelos pares. Esse é o cotidiano do trabalho dos cientistas contemporâneos. Em cada uma dessas etapas sutilmente se esconde o próprio olhar do cientista (principalmente daquele que lidera a execução do trabalho). Que pergunta devemos formular para entender melhor os fenômenos que nos cercam? Como devemos controlar os experimentos? Que rigor usar para delimitar aquilo que é encontrado ao acaso e diferenciar resultados reais (que por definição deveriam se repetir em diferentes circunstâncias). E por fim, como interpretar mais ou menos limitadamente os achados do experimento, divulgando-os com afirmações mais fortes à medida que estejamos mais “convencidos” da sua qualidade. Percebam, cabem nessas entrelinhas muita subjetividade, e é por isso que a ciência é um produto de seu tempo. Não esquecendo que ao final desse processo uma comunidade formada por cientistas irá julgar a qualidade desse trabalho, e com que força devemos tomar as suas conclusões.

Quando pensamos em perguntas científicas como: que força é essa que atrai para baixo, para o centro do planeta, todos os objetos? Imaginamos quase instantaneamente experimentos como soltar objetos de diferentes massas e medir a velocidade da queda, manipulando diferentes condições ambientais. E daí podemos, como um bebê, repetir sem parar o mesmo jogo de derrubar tudo que vê ao seu alcance e então registrar na memória o poder da gravidade sobre os objetos. Percebemos aqui relevância da pergunta e a maneira cabal de atestar a existência da gravidade antes mesmo de podermos nomeá-la. O cientista aqui, um bebê, ainda sem influências culturais futuras, traça seu aprendizado da mesma forma sem preconceitos ou vieses inconscientes. No entanto, como atestar conceitos como a diferença “biológica” de comportamentos inatos entre meninos e meninas, por exemplo? Ou entre indivíduos de diferentes etnias, e a influência da ancestralidade nesse contexto.

Somos seres produtos do nosso tempo, tomamos decisões refletindo em cima do que aprendemos do mundo desde a infância, com todos os nossos vieses inconscientes que alimentam nossos preconceitos. A ciência testa a natureza, fala sobre a natureza, mas é feita por seres humanos. E o padrão elitizados cristalizado na comunidade científica desde seus primórdios faz da sua classe um clube de lordes composto em sua maior parte por homens brancos heteronormativos, nascidos e criados em centros norte-americanos ou europeus (qualquer diferença nesse padrão já se considera diversidade). E não sejamos ingênuos, essa comunidade produz e julga a ciência, determinando com seus vieses inconscientes o teor da voz da razão.

Então como falar sobre a isenção dessa voz coletiva ao formular perguntas, desenhar experimentos interpretar resultados e divulgar com maior ou menor peso afirmações que confirmem o senso comum de sua comunidade? Por exemplo, faz muito sentido achados que confirmem a superioridade da constituição física e medidas indiretas de capacidade intelectual de ancestrais anglo-saxões em comparação ao ancestrais de outras localidades, como África. Ou mesmo a ligação de aspectos biológicos que “confirmem” a aptidão de meninas a determinadas funções de cuidado, gerando um destino infalível de estar no lar, na maternagem eterna de todos os familiares, estendendo para o mundo a eterna sina de ser mulher. Faz sentido, mas apenas para um contexto já privilegiado que usa a força da voz da razão para aprofundar ainda mais as diferenças de oportunidades.

Na atual conjuntura mundial em que nos encontramos, em meio a uma pandemia de difícil controle, faz-se ainda mais importante a suavidade do ecoa da real voz da razão. Nesse contexto fica necessário que cada país, cada cultura, cada região seja autônoma na geração de conhecimento, e que haja democraticamente acesso à divulgação ampla e irrestrita desses resultados. O que aconteceu na China muito nos interessa, e o que acontece hoje no Brasil interessa ao mundo, à saúde da humanidade.

Só conseguiremos atingir um patamar de descobertas amplas e mais próximas da natureza quando formos capazes de superar nossos preconceitos no mecanismo de geração de conhecimento. Acesso amplo a uma educação científica, mais igualdade de oportunidades, maior interesse pela produção de culturas diversas: é desse caldo de múltiplos temperos que podem surgir as melhores ideias para superarmos nossas dificuldades. Retirar o véu do preconceito humano que encobre os segredos da natureza difíceis de se entender pela perspectiva padrão. Resgatar o que a ancestralidade ainda resiste em nos avisar: a voz da razão, ainda que em coro de múltiplas cores e tons, sempre será suave.

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