Era só mais um dia de quarentena quando, distraída entre o esboço de um artigo para escrever e a tarefa de uma pia de louça para lavar, recebi, em choque a notícia fatal:
Morreu Rubem Fonseca.
Morreu.
Às vésperas de seu aniversário (iria completar 95 anos em 11 de maio), morreu no começo da tarde de 15 de abril, vitimado por um enfarte. Depois de mais de trinta livros de romances e contos, seu coração cansou, enfim. E o consolo para nós, leitores e fãs, é que sua morte foi rápida e certeira, tal como se com o tiro de uma pistola Glock, a arma predileta dos personagens de suas histórias policiais.
A primeira vez em que me lembro de realmente ter lido Rubem Fonseca foi no curso de Letras da UECE, apresentada pela professora Lúcia, na disciplina de Literatura IV. A turma foi instada a ler o clássico Feliz Ano Novo e eu recordo bem o espanto dos colegas diante das páginas que pareciam escorrer sangue. Eu, claro, adorei logo de pronto. E a partir daquela aula, o escritor mineiro naturalizado carioca iria fazer parte definitiva da minha coleção particular de malditos preferidos, junto a Dalton Trevisan e João Antônio.
Para aqueles que não o conhecem, convém logo avisar: quem espera uma literatura bem-comportada, quem preconiza para o fazer literário uma missão edificante e redentora, quem acha que romances e contos devem ser manuais para ensinar e salvar o mundo, esse aí vai logo quebrar a cara. No seu estilo sucinto e mordaz, de humor ácido e de temas brutais, Rubem Fonseca não tinha papas na língua em seus escritos e não era de poupar o leitor. Abordando o mundo no seu lado cru e cruel, podia mesmo parecer um tanto quanto cínico (sobretudo se pensarmos na realidade atual, tão necessitada de empatia). E, para ilustrar o que eu digo, não posso deixar de citar um trecho de, talvez, um dos seus contos mais fodásticos, O Cobrador, do livro homônimo publicado originalmente em 1979. Trata-se da cena inicial, o momento em que o protagonista, sofrendo de uma atroz dor de dente, procura o consultório de um dentista:
Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: a raiz está podre, vê?, disse com pouco caso. São quatrocentos cruzeiros.
Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.
Não tem o quê?
Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.
Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele – que tal enfiar isso no teu cu? Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro.
Sim, certamente os paladinos da “boa” moral e dos “bons” costumes hão de se estarrecer. Foi o caso, aliás, do senhor senador Dinarte Mariz, do partido ARENA (partido da Ditadura), que foi favorável à censura do livro “Feliz Ano Novo” e assim declarou, em 1977: “Suspender Feliz Ano Novo foi pouco. Quem escreveu aquilo deveria estar na cadeia e quem lhe deu guarida também”.
Mais um motivo para ser fã de Rubem Fonseca. E, como fã, fica difícil para mim eleger qual o livro favorito. Há dois, no entanto, que não posso deixar de citar: “Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos”, um romance precioso que traz para o reino da ficção a lembrança do escritor soviético Isáak Bábel, outro perseguido por um governo totalitário, tal como o próprio Fonseca. E ainda a coletânea “Ela”, cujos contos são intitulados com nomes de mulheres e que pode horrorizar muita pseudo-feminista tamanha sua ousadia em defender a liberdade de pensamento.
Haveria ainda muitos detalhes que me comovem a respeito da obra e da história de Rubem Fonseca, desde o episódio em que ele defendeu Clarice Lispector em público até o momento, mais recente, em que me atrevi a mandar para ele um livro meu de contos. Mas o melhor, agora, é voltar aos livros do mestre, grande legado que nos deixou e cuja dívida não tem preço.