Ai, que preguiça…
Natal, RN 29 de mar 2024

Ai, que preguiça...

8 de fevereiro de 2020
Ai, que preguiça...

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Eu estava para concluir minha graduação em Letras, tempos atrás, lá na querida UECE, quando li “Macunaíma”, de Mário de Andrade.

Li de um jato, extasiada com a verve do modernista nessa rapsódia deliciosa. E lembro muito bem que o que primeiro pensei, ao concluir a leitura do livro, foi: “como é que eu não encontrei esse livro antes?”

Assim, qual não foi o meu estarrecimento ao saber nessa semana que o governo de Rondônia teria mandado recolher das bibliotecas das escolas do estado esse e outros títulos clássicos da literatura brasileira. Pasmemos: até o genial “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, foi censurado num índex infame de 43 livros a “serem recolhidos” sob a alegação de que teriam “conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”.

Quando li essa notícia, imediatamente me ocorreu a frase célebre que o “herói sem nenhum caráter” costumava pronunciar na narrativa antropofágica de Mário de Andrade: “Ai que preguiça!”

Que preguiça dessa gente redentora e salvadora, paladinos da “boa” moral e dos “bons” costumes que vieram proclamar como a vida dos outros deve ser vivida, nisso se incluindo os livros que devem ser ou não lidos. Que preguiça do cacete dessa gente estúpida e hipócrita!

A lista (dessas listagens típicas da Inquisição medieval) foi chancelada pelo secretário de (des)educação, Suamy Lacerda de Abreu, e pela diretora Irany de Oliveira Lima, ordenando em memorando interno que as coordenadorias tirassem das estantes e encaixotassem os livros “malditos”.

Eu confesso que ainda consigo me chocar com as evidências que a cada dia nos mostram a horrível distopia que vivemos no Brasil destes tempos, distopia já alertada antes e alhures em tantos títulos incríveis da literatura, como “1984” de George Orwell ou “Zero” de Ignácio de Loyola Brandão. O que não surpreende nem um pouco é saber que o governo de Rondônia, que determinou essa medida, seja de um tal de Coronel Marcos Rocha, adivinha de qual sigla partidária? PSL, o partido pelo qual foi eleito o messias da desgraça política que vivemos atualmente.

Para quem não leu ou leu, recomendo demais a (re)leitura de “Macunaíma”. Sobretudo porque, e é o que há de mais curioso, trata-se de uma narrativa recheada de lendas e causos genuinamente brasileiros, de norte ao sul do país, o que deveria, a priori, entusiasmar os “nacionalistas” de plantão a favor da “Pátria Amada”. Mário de Andrade, seu autor, era um entusiasta da cultura brasileira e lançou o livro em 1928, antes de registrar em outro clássico seu, “O turista aprendiz”, suas viagens pelas quebradas do Norte e do Nordeste, incluindo aí o encontro com o folclorista Câmara Cascudo e o cantador de coco Chico Antonio, aqui no Rio Grande do Norte.

Ao que parece, houve um recuo do governo em tal medida, o que não nos tira de todo o terror. E é meio aterrorizada que busco consolo procurando meu livrinho de eras atrás, uma 20ª edição da Itatiaia, de 1984, adquirida num sebo de Fortaleza. Abro o livro a esmo e dou de cara com uma fala do herói que a meu ver traduz exemplarmente o diálogo necessário a se travar com essa gente estúpida e hipócrita:

Macunaíma ficou muito despeitado e perguntou pro rival:

- Me diga uma coisa, você conhece a língua do lim-pim-gua-pá?

- Nunca vi mais gordo!

- Pois então, rival: Vá-pá à-pá mer-per-da-pá!

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.