Eu estava para concluir minha graduação em Letras, tempos atrás, lá na querida UECE, quando li “Macunaíma”, de Mário de Andrade.
Li de um jato, extasiada com a verve do modernista nessa rapsódia deliciosa. E lembro muito bem que o que primeiro pensei, ao concluir a leitura do livro, foi: “como é que eu não encontrei esse livro antes?”
Assim, qual não foi o meu estarrecimento ao saber nessa semana que o governo de Rondônia teria mandado recolher das bibliotecas das escolas do estado esse e outros títulos clássicos da literatura brasileira. Pasmemos: até o genial “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, foi censurado num índex infame de 43 livros a “serem recolhidos” sob a alegação de que teriam “conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”.
Quando li essa notícia, imediatamente me ocorreu a frase célebre que o “herói sem nenhum caráter” costumava pronunciar na narrativa antropofágica de Mário de Andrade: “Ai que preguiça!”
Que preguiça dessa gente redentora e salvadora, paladinos da “boa” moral e dos “bons” costumes que vieram proclamar como a vida dos outros deve ser vivida, nisso se incluindo os livros que devem ser ou não lidos. Que preguiça do cacete dessa gente estúpida e hipócrita!
A lista (dessas listagens típicas da Inquisição medieval) foi chancelada pelo secretário de (des)educação, Suamy Lacerda de Abreu, e pela diretora Irany de Oliveira Lima, ordenando em memorando interno que as coordenadorias tirassem das estantes e encaixotassem os livros “malditos”.
Eu confesso que ainda consigo me chocar com as evidências que a cada dia nos mostram a horrível distopia que vivemos no Brasil destes tempos, distopia já alertada antes e alhures em tantos títulos incríveis da literatura, como “1984” de George Orwell ou “Zero” de Ignácio de Loyola Brandão. O que não surpreende nem um pouco é saber que o governo de Rondônia, que determinou essa medida, seja de um tal de Coronel Marcos Rocha, adivinha de qual sigla partidária? PSL, o partido pelo qual foi eleito o messias da desgraça política que vivemos atualmente.
Para quem não leu ou leu, recomendo demais a (re)leitura de “Macunaíma”. Sobretudo porque, e é o que há de mais curioso, trata-se de uma narrativa recheada de lendas e causos genuinamente brasileiros, de norte ao sul do país, o que deveria, a priori, entusiasmar os “nacionalistas” de plantão a favor da “Pátria Amada”. Mário de Andrade, seu autor, era um entusiasta da cultura brasileira e lançou o livro em 1928, antes de registrar em outro clássico seu, “O turista aprendiz”, suas viagens pelas quebradas do Norte e do Nordeste, incluindo aí o encontro com o folclorista Câmara Cascudo e o cantador de coco Chico Antonio, aqui no Rio Grande do Norte.
Ao que parece, houve um recuo do governo em tal medida, o que não nos tira de todo o terror. E é meio aterrorizada que busco consolo procurando meu livrinho de eras atrás, uma 20ª edição da Itatiaia, de 1984, adquirida num sebo de Fortaleza. Abro o livro a esmo e dou de cara com uma fala do herói que a meu ver traduz exemplarmente o diálogo necessário a se travar com essa gente estúpida e hipócrita:
Macunaíma ficou muito despeitado e perguntou pro rival:
- Me diga uma coisa, você conhece a língua do lim-pim-gua-pá?
- Nunca vi mais gordo!
- Pois então, rival: Vá-pá à-pá mer-per-da-pá!