Ainda silenciadas ?
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Ainda silenciadas ?

29 de abril de 2021
Ainda silenciadas ?

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Recentemente assisti ao filme espanhol chamado Silenciadas, do Diretor Pablo Agüero. O filme retrata o período da perseguição cristã, no século XV, às mulheres, período este conhecido como caça às bruxas. O filme sem dúvida alguma merece a indicação e todos os prêmios conquistados, tanto por seu roteiro, assinado também por Pablo Agüero e Kattel Guillou, quanto pelo cenário, figurinos e interpretação.

A história se passa no norte da Espanha, no século XV, quando o juiz inquisitor Rostegui, nomeado pelo rei Felipe III, viaja por uma região marcada por suas crenças místicas e pagãs e instaura uma inquisição, prendendo e torturando jovens mulheres até o julgamento e condenação à morte. Toda a trama persecutória é oficialmente fundada no mais alucinante dogma do pacto com o demônio – a festa Sabbath.

O grupo inquisidor, composto pelo juiz, pelo escrivão e por soldados, posteriormente apoiado pelo próprio padre da localidade, chega à cidade e aleatoriamente sequestra e prende um grupo de jovens, sob a acusação de bruxaria, feitiçaria e celebração de fidelidade ao Demônio. O que se segue a cada segundo deste intenso filme é uma trama de violência física, psicológica e material, contra a qual não se imagina resistência possível.

Por que são as jovens mulheres o alvo desse julgamento cristão? Por que o investimento violento e dogmático da Santa Inquisição acontece quando os pais, maridos e irmãos estão em alto mar, pescando? O momento em que chega o comboio inquisitório é retratado com toda a beleza e alegria dessa convivência inteiramente feminina e natural, contrastando com o que vem em seguida: a instalação do tribunal religioso, o sequestro e a prisão das jovens e o julgamento.

Ao assistir essa história, para além da admiração da obra cinematográfica, a mente fica por vários dias refletindo sobre a enraizada cultura da violência contra a mulher, contra o feminino. Não se trata de violência apenas pela intolerância religiosa, mas também e principalmente pelo patriarcalismo. Do século XV (também antes disso) até os presentes dias deste início do século XXI, toda forma de violência se perpetua. São sintomas dessa cultura violenta a objetificação da mulher, a possessividade sobre seu corpo, seu pensamento e sua existência.

Mas, por outro lado, o filme também deixa latente em nossos pensamentos e ações o movimento de resistência e transformação dessa cultura - ainda realidade. A forma de resistir é reconhecer-se bruxa mesmo. É reconhecer-se dotada do poder de sua voz e convencimento, do poder de sua presença e inteligência, do poder de sua dança e da união com todas as outras mulheres. É saber e viver defendendo sua essência, sua criatividade, sua beleza, suas alegrias, dores e dissabores. É mostrar e convencer o mundo inteiro de que sua liberdade não cabe dentro dos limites impostos por qualquer religião, sistema de governo, relações familiares e sociais e para isso a sede de justiça e a luta por sobrevivência serão a propulsão para a almejada igualdade.

A resistência, entretanto, não se dá puramente através dos livros, filmes, palestras ou discussões acadêmicas. A resistência exige uma existência consciente de todas as formas de inquisição e violência cotidiana e social que enfrentamos. Exige a consciência da luta de classes e do racismo estrutural, mas principalmente, a consciência de que a misoginia e o machismo são os pilares estruturantes do sistema capitalista explorador. Unirmo-nos e organizarmo-nos de maneira consciente, plural e criativa é o passo importante a ser dado.

Enquanto todas nós, pessoas com identificação do gênero feminino, não assumirmos e retomarmos coletivamente o protagonismo das decisões e ações sobre tudo que envolva nossa existência, a inquisição e a violência de gênero continuarão a existir, mesmo que disfarçadas (ou não) em representatividade e cotas femininas, “lugar de fala”, quebra do tabu da beleza etc. Estejamos atentas às decisões que elegemos prioritárias e não àquelas impostas, porque assim como no século XV, também no século XXI, existimos acreditando que DIAS MULHERES VIRÃO.

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