Amanhã a vítima pode ser você
Natal, RN 19 de abr 2024

Amanhã a vítima pode ser você

4 de novembro de 2020
Amanhã a vítima pode ser você

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Não sei se pelo crescimento vertiginoso de casos de feminicídio durante a pandemia (foram mais de 1800 mulheres mortas de forma violenta nos primeiros seis meses) ou se pela mais recente absurda e dolorosa vergonha do mundo jurídico denominada como "estupro culposo", em sentença decorrente de longo processo que pretendia a responsabilização criminal por um ato que trouxe prejuízos irreparáveis à vida de uma mulher, lembrei nesta terça, 3 de novembro, de uma situação que tive o desprazer de presenciar no metrô de Brasília, e que infelizmente deve ser muito mais corriqueira do que imaginamos.

Aconteceu em um dos últimos dias antes da quarentena, na viagem de volta do meu trabalho para casa. Elas sentaram no banco logo atrás de mim, no vagão das bicicletas e embalaram uma conversa em voz alta, daquelas que imploram para serem ouvidas, e quase convidam os espectadores a participarem, de certa forma.

Com ar de desdém, as duas mulheres falavam do último feminicídio ocorrido na cidade. Uma delas afirmou conhecer a vítima. Tinha sido sua vizinha. Assassinada brutalmente, por um homem que a imaginou como propriedade, mas não foi isso o que elas disseram. Estou desviando o assunto de propósito para me incluir na conversa, ao menos telepaticamente.

Mas elas não me ouvem. Ignoram a sororidade no ar. Desconhecem não apenas a palavra, mas o sentimento. E não demoraram a condenar a vítima. "Ela, também, procurou, viu? Fez por onde," como se a moça tivesse culpa de lhe tirarem a vida; como se assim quisesse e desejasse a precoce morte, aos 20 e poucos anos.

E continuaram o rosário de absurdos, lembrando ainda de outra mulher que dias antes teve mesmo destino, encontrada morta pela filha, no próprio apartamento. "Ah, quem manda conhecer o cara por aplicativo e já deixar entrar em casa e tudo? Deu muita bobeira," julgaram, sem qualquer fundamento, só mesmo pelo prazer de julgar.

Senti saudade do vagão reservado à mulheres, que antes escolhia. Pesou sobre mim um arrependimento gigante por ter sentado ali, no banco vazio na frente delas, no vagão das bicicletas. Mas muito além do arrependimento e da saudade, meu sentimento foi de uma incontida indignação.

Ato reflexo, levantei subitamente do banco, decidida a me libertar daquela sensação que me fazia querer vomitar palavras até então presas no pensamento e que, de repente, escorregaram da boca, em voz alta, entre meus dentes cerrados de raiva: "Quer dizer que eles matam e vocês culpam as vítimas? Sério isso? Amanhã pode ser com vocês, viu?"

Elas se entreolharam, certamente imaginando "quem é essa louca", mas sei que nem entenderam o que eu disse, ou sequer quiseram escutar. Apenas me afastei, de pé pelo resto da viagem, mas longe daquela atmosfera sem qualquer empatia, gerada por uma conversa que matou duas mulheres em poucos minutos, pela segunda vez.

Provavelmente hoje essas mulheres devem estar voltando pra casa e certamente não vão poupar a vítima do "estupro culposo" de um novo julgamento, ainda pior do que o do próprio juiz. Mas pelo menos dessa vez a indignação de muitas mulheres e de muitos homens, que não aceitam a impunidade e não se calam contra a violência contra a mulher, ecoou nas redes sociais como uma corrente de sororidade que mais do que nunca, grita: ninguém solta a mão de ninguém!

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