Amizade além da vida
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26 de outubro de 2017
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Há um ano, perdi um grande amigo cujo nome não citarei pra preservar a privacidade de todos os envolvidos. Uma pessoa conhecida por sua alegria, vivacidade, bom humor, e observações espirituosas, e que sucumbiu a uma doença que não deveria mais, nos dias de hoje, seguir ceifando a vida de pessoas tão jovens e incríveis quanto ele: O HIV. Para a minha geração - a nossa, afinal tenho agora a mesma idade que meu amigo tinha ao sucumbir há um ano - o medo do HIV é um verdadeiro paradigma. Crescemos sob esse medo. Quantos de nós, nascidos nos anos 80, e que foram adolescentes nos anos 90, momento do auge da epidemia, muitas vezes perderam de vivenciar situações eróticas porque, na hora H, não havia camisinha? E sem camisinha não dá, né?

Infelizmente, cada vez mais, dá sim. Oh se dá! Parece que o distanciamento no tempo, das terríveis noticias da epidemia de HIV dos anos 1980 e 1990, ou com a gradativa conquista de uma boa qualidade de vida das pessoas portadoras, vivendo décadas, de maneira considerada absolutamente normal, contribuíram para que tenhamos perdido o medo do HIV. E não só dele, das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) em geral. O pais vive uma crise de saúde com a recente explosão da sífilis, considerada um mal do século XIX e que agora retorna com toda força, tendo espetaculares crescimento do contagio, em alguns lugares da ordem de 200%.

Sem duvida, a perda do medo do HIV, é uma parte importante na compreensão desse fenômeno. Mas outras questões também precisam ser avaliadas. Parece-me que a internet e seus sites pornôs - onde se pratica o dito sexo “bare” de maneira absolutamente naturalizada - tem influência sobre a crise das praticas sexuais seguras. Mas talvez esse fenômeno ficasse circunscrito a determinados grupos que acessam e fetichizam as praticas sexuais veiculadas na rede. Só que os números mostram o crescimento das taxas de contaminação por DST em todos os grupos, gêneros (não mais somente como um “câncer gay”, mas atingindo uma muito maior equidade de gênero), faixas etárias e grupos socioeconomicos, ou seja é algo generalizado.

Até grupos considerados mais conservadores, como idosos ou pessoas religiosas, também tem sido atingidas. Talvez a ofensiva fundamentalista cristã ao estado laico ajude a explicar também isso. A igreja católica, as igrejas cristãs brasileiras, jamais assumiram a viabilidade dos métodos contraceptivos como camisinha, por exemplo, nem mesmo pra efeitos de proteção da saúde. Lembro de ter visto vários casos de lideres religiosos que fizeram ostensiva campanha contra a vacina do HPV, preferindo trilhar o caminho da hipocrisia. As igrejas cristãs negam a pratica cada vez mais difundida do sexo livre que, se feito com segurança, não me parece gerar problema algum aos que o praticam e preferem reificar um ideal medieval de austeridade sexual que, sem duvida, não deve ser praticado pela imensa maioria dos que o dizem praticar. Exemplo melhor disso são as cada vez mais frequentes revelações de escândalos sexuais envolvendo autoridades religiosas seja do catolicismo seja do protestantismo mundo afora.

Meu amigo, uma pessoa linda, da militância, de esquerda, que acreditava e lutava por um mundo melhor, com o qual fundamos o GUDDES (Grupo Universitario em Defesa da Diversidade e Expressão das Sexualidades) junto com Leo Lobato e Daniel Souza, essa pessoa incrível, já em fase terminal, me desabafou o seguinte: “A culpa é minha, eu já sabia da doença há alguns anos mas não tratei, eu fingi que não era comigo, eu ignorei”.

Meu querido, a culpa não foi sua! Você não conseguiu assumir que tinha HIV - e consequentemente ter feito o tratamento que muito provavelmente talvez tivesse poupado, por hora, sua vida - porque era muito difícil assumir para essa sociedade racista, classista, LGBTfóbica. A condição de homossexual afeminado, negro, morador de periferia e portador de HIV já era muito barra pesada. Ser os três adjetivos primeiro listados e ter o ultimo foi demais pra você, eu te entendo, acho. Mas não me conformo. Não aceito que, por puro preconceito, você tenha desistido de enfrentar o mal que te afligia e tenha sucumbindo numa passagem tão breve, como diria tom Jobim: “Longa é arte, breve é a vida, de tristes flores...”

Na ausência de talento artístico maior, te dedico essa homenagem póstuma meu querido, através de um texto que não é literatura nem poesia, que são artes onde não opero com maestria, mas onde falo do fundo do coração, dessa saudades que você nos deixa e de mais essa lição de vida, de luta, contra todos os preconceitos que você foi, que nós somos e queremos continuar a ser, porque, enquanto o fascismo não cessar, nós não cessaremos. Adeus amigo, até um dia.

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