Argentina de Macri: muita violência, pouca soberania e o neoliberalismo turbinado
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Argentina de Macri: muita violência, pouca soberania e o neoliberalismo turbinado

28 de dezembro de 2017
Argentina de Macri: muita violência, pouca soberania e o neoliberalismo turbinado

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Buenos Aires, quarta-feira, tarde de 13 de dezembro. Avenida 9 de Julho. Mais de 100 mil pessoas marcham em protesto contra a reforma previdenciária que o presidente Maurício Macri pretende aprovar no Congresso, em ritmo de urgência, sem qualquer debate mais amplo com a sociedade.

Naquele momento, a Comissão de Previdência Social da Câmara dos Deputados ouvia o ministro do Trabalho, Jorge Triaca, apenas para dar aparência de diálogo ao que na verdade era o rolo compressor governista em plena marcha. Houve confusão na comissão. Deputados, seguranças e pessoas que acompanhavam a sessão entraram em choque e a reunião foi suspensa.

Nas ruas, especialmente na Avenida de Mayo, que liga a Casa Rosada ao Congresso, a Gendarmeria – espécie de polícia militar federal – fazia o trabalho sujo que a cúpula do governo espera dela. Dentro e fora do Parlamento, na quarta e ainda com mais truculência na quinta-feira (14), parlamentares e manifestantes contrários à reforma foram agredidos com gás de pimenta, socos, chutes e mordidas de cães. Na repressão generalizada, mais de duas dezenas de jornalistas também entraram para a lista de vítimas da violência.

Mayra Mendoza, representante da província de Buenos Aires, com identificação parlamentar na mão, recebeu um jato de gás quando tentava ingressar naquele que é o seu local de trabalho. Horacio Pietragalla, eleito pela mesma província e filho de desaparecidos políticos, tentava evitar a prisão de um sem teto quando um gendarme disparou o spray a centímetros no seu rosto (agressão registrada em vídeo, aos 2’15”). Leonardo Grosso e Victória Donda, atacados por cães em ato que depois ainda foi motivo de deboche por parte do governista Pablo Torello: “O que eles [os deputados] querem? Que abanem o rabo?”, disse o parlamentar do Cambiemos, que é um dos principais representantes dos ruralistas no Congresso.

Fotógrafos de vários meios – alguns com câmeras erguidas para que não pairasse dúvida sobre o que faziam ali – foram alvejados com balas de borracha. Pablo Piovano, 18 anos de profissão, recebeu 10 disparos a meio metro de distância. Ignacio Petunchi recebeu dois balaços de borracha, um na cabeça. Leandro Teysseite também foi ferido na cabeça. Ao todo, 23 profissionais de mídia conheceram a selvageria da polícia, segundo levantamento feito pelo Sindicato de Imprensa de Buenos Aires, que pediu a renúncia da ministra de Segurança, Patricia Bullrich – cuja família esteve diretamente envolvida com a famigerada “Campanha do Deserto”, quando o Estado argentino promoveu um genocídio dos povos originários e a entregou as terras destes às famílias da oligarquia.

Pelo menos dois atropelamentos intencionais foram registrados em câmeras. Idosos receberam golpes a esmo com cassetete e também se tornaram alvo dos disparos. Pessoas que não tinham nada a ver com a manifestação foram presas arbitrariamente e em alguns casos a polícia plantou “provas” para tentar incriminá-las.

Este foi o caso da brasileira Damiana Negrín Barcellos, estudante de artes visuais, detida quando saía do trabalho de moto, no sentido contrário dos protestos. A brutalidade da Gendarmeria contra Damiana foi gravada por um morador do edifício em frente ao local do episódio. O registro viralizou e deixou mudos até os defensores mais fanáticos do macrismo.

Esteban Rossano, 19 anos, que sonha em entrar para o Exército desde os 9, cometeu o equívoco de errar de estação de metrô. Vive em Morón, cidade do conurbano de Buenos Aires, e estava passeando pela capital. Encontraria os amigos na estação Sáenz Peña, mas acabou descendo na parada seguinte, Congreso, bem no foco dos protestos. Ao sair do trem já sentiu os efeitos do gás lacrimogênio e ouviu o som dos tiros. Tentava fugir do gás e voltar a pé para o ponto de encontro com os amigos quando foi preso. Na sua mochila, a polícia colocou pedras e panfletos pisoteados. Estas eram as provas.

Na segunda-feira (18), após a suspensão da sessão de quinta, a Câmara voltou a apreciar o projeto. A oposição usou as mais de 17 horas de debate para expor as contradições da proposta do governo e a fragilidade da argumentação dos seus defensores, que desafiavam a aritmética mais básica ao dizerem que os aposentados ganhariam obteriam ganhos reais maiores ao mesmo tempo em que o Estado economizaria mais de 100 bilhões de pesos com a reforma. A conta não fechava porque a máxima do neoliberalismo é exatamente essa: dizer o que não faz para fazer o que não diz.

A proposta foi aprovada por 128 votos contra 116 contrários, duas abstenções e 11 ausências. O custo: mais de 70 pessoas presas, pelo menos duas centenas de feridos, incluídos os cerca de 80 policiais atingidos por pedras – inclusive por colegas que atuaram infiltrados entre os manifestantes, em recorrente tática de governos conservadores para justificar a violência estatal – na segunda-feira.

Antes de acionar sua máquina no Parlamento, os únicos atores políticos que o presidente efetivamente escutou foram os governadores, na esperança que estes derrubassem a resistência de alguns deputados e senadores “flexíveis” da oposição. Surtiu efeito o “diálogo” que teve elementos de chantagem: os governadores que não conseguissem os votos de suas bases não teriam acesso a um crédito que o governo federal prometeu como compensação às províncias, todas extremamente endividadas. De onde virá essa verba para socorrer gestões irresponsáveis e incompetentes: do bolso dos aposentados.

Um ano antes de toda a violência desses calorosos dias de dezembro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) já havia recomendado à Argentina, em relatório amplamente difundido na mídia local, um ajuste forte no sistema previdenciário. O projeto aprovado pelo Congresso segue à risca as recomendações do órgão multilateral. A oposição denunciou a soberania nacional hipotecada por Macri, que na campanha negara veementemente qualquer reforma previdenciária regressiva – assim como negara qualquer tarifaço ou o fim do programa Futebol para Todos.

Poucas horas após a aprovação da reforma, Macri fez pronunciamento exibindo o largo sorriso dos vitoriosos – ou dos cínicos, diriam alguns. Agradeceu aos seus acólitos no Congresso, parabenizou a polícia e condenou a “violência insuflada” por parlamentares oposicionistas. Na sua “revolução da alegria”, Macri enxerga o mundo de maneira bastante peculiar. O presidente ainda visitou no hospital um policial ferido. Coube à mãe do agente desmascarar a farsa: durante entrevista ao vivo, protestou que seu filho trabalhou sem escudo e sem qualquer arma, ou seja, era mais um infiltrado que acabou sendo vítima da truculência dos próprios colegas.

Essa é a Argentina de Maurício Macri, empresário cuja família fez fortuna com a ditadura e se envolveu em dezenas de escândalos de corrupção e fraude econômica, inclusive no Brasil.

PS: A popularidade de Macri, segundo o Índice de Confiança no Governo, avaliação mensal realizada pela Universidade Torcuato Di Tella, despencou 20% em dezembro. O ICG vai de 0 a 5 e no mês atual o governo Macri tem 2,36 contra 2,97 de novembro. O dado foi divulgado - apenas pelo Página 12 entre os principais meios - nesta quinta-feira (28) e em toda a série histórica só encontrou paralelo em duas ocasiões: durante a grave crise econômica de 2002, no governo de Eduardo Duhalde, e no locaute patronal dos ruralistas contra Cristina Kirchner em 2008.

*Rogério Tomaz Jr. é jornalista e reside em Montevidéu, onde escreve o livro “Conversando com Eduardo, viajando com Galeano”.

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