As crendices de Moro
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As crendices de Moro

9 de janeiro de 2020
As crendices de Moro

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Foi da pena do Ministro Sérgio Moro que saiu uma brilhante ideia: acabar com a progressão de regime para membros de organizações criminosas[1]. Simples, mas eficaz – assim definiu o ex-juiz –, a proposta findou-se materializando no art. 2º, §9º[2], da Lei das Organizações Criminosas, a partir de alteração implementada pela chamada Lei “anticrime”.

O fascínio de Moro por palavras que põem ponto final a discussões científicas criteriosas é admirável! Não nos deixa mentir o presunçoso nome que ele mesmo deu ao projeto – felizmente bastante remodelado em sua versão final –, Lei “anticrime”, sepultando, assim, de seu gabinete e com sua caneta Bic (os Eleitos a reboque do bolsonarismo nos pouparam um vultoso gasto com canetas mais sofisticadas!), a questão criminal no Brasil.

Não admira que o todo-poderoso ex-juiz-herói, à semelhança destes bravos combatentes à margem da lei, tenha dispensado o auxílio de professores de Direito Penal, uma vez que o objetivo do então projeto não era o de agradá-los[3]. Bastavam suas poderosas ideias para demolir um a um os problemas criminais brasileiros, que só existiriam porque os professores de Direito Penal estariam mais interessados em defender pautas “ideológicas”, para ficar na gramática bolsonarista, quem sabe infectados pelo bacilo do garantismo. Ou pior: do comunismo...

Se é verdade que Moro conseguiu criar fatos novos mediante seu voluntarismo quando sentenciava na República de Curitiba, isso sem depender de qualquer fator externo, o mesmo não se repete quando ele se põe a legislar. A realidade, implacável que é, nos dá pistas de como o desentendimento de causa (e das causas dos crimes e das organizações criminosas) torna parte das propostas do nosso ex-juiz natimorta.

Esse é o caso do fim da progressão de regime para membros de organização criminosa. Vou deixar de lado a claríssima inconstitucionalidade da medida[4] para me ater no seu provável fracasso, na medida em que se trata de um remédio ministrado para aplacar um sintoma cujas causas são desconhecidas pelo médico.

Para nosso autossuficiente Ministro, a regra – que ele possivelmente extrai da teoria microeconômica do crime – é clara: cria-se um incentivo, um reforço negativo, para que o apenado não se filie a organizações criminosas. Simples assim!

Acontece que Moro não se dá conta de que a regra da realidade foge à lógica simplória da sua medida “simples, mas eficaz”. Reparem só: não é como se fosse uma escolha da grande massa de apenados integrar ou não uma organização criminosa. No mais das vezes, esta é uma condição para se manter vivo. Ou, ainda, para levar uma vida minimamente digna num sistema prisional cujo principal propósito é apagar indesejados da sociedade, de nada lhes importando a dignidade.

Foi, aliás, por conta da omissão estatal em cumprir o mínimo, a Lei de Execuções Penais, que os presos se viram obrigados a disputar seus direitos por meio de sindicatos do crime, vários entre os quais, com o passar do tempo, passaram a funcionar como empresas de fato, disputando mercados ilícitos altamente rentáveis. O ciclo vicioso, que nasce no seio da maltratada população periférica, despossuída e obrigada a vender sua força de trabalho por salários de fome[5], termina com o recrutamento de apenados[6] por crimes não violentos, como o tráfico de drogas, para cerrar fileiras na linha de frente de negócios ilícitos que (desnecessário dizer) usam da violência como expediente.

Quisesse Moro mexer, de fato, com as organizações criminosas, teria tocado na ferida mais exposta destas: os mercados de armas e drogas. Controlando o tráfico do primeiro com máximo rigor e regulamentando amplamente o segundo; sufocando a oferta do primeiro e possibilitando o acesso legal ao segundo, o que diminuiria sensivelmente os lucros exorbitantes remunerados pelo altíssimo risco de comercialização, que chegam às organizações criminosas.

Insistir na nada nova política de repressão acéfala é mais do mesmo. O mesmo, se é que é preciso lembrar, é a violência entranhada na nossa sociedade, ilustrada pela polícia que mais mata e que mais morre[7] e pelo maior número absoluto de homicídios do mundo[8]. A repressão tem teimado em vencer e em fracassar simultaneamente, abrindo alas para uma sociedade da violência cujas vítimas somos nós, os mandados do mundo.

Enquanto as palavras de Moro não torcerem a realidade a seu juízo, o cenário está dado. Recorremos, ainda assim, à demagogia que sempre nos foi vendida, agora sob nova direção?

[1] https://www.conjur.com.br/2019-jan-02/moro-defende-fim-progressao-regime-integrante-faccao

[2] § 9º O condenado expressamente em sentença por integrar organização criminosa ou por crime praticado por meio de organização criminosa não poderá progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento condicional ou outros benefícios prisionais se houver elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo.” (NR)

[3] https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI295936,31047-IAB+examina+pacote+anticrime+e+repudia+declaracao+de+Moro

[4] Por tudo, conferir o HC 82959/STF e a Nota Técnica produzida pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais <https://www.ibccrim.org.br/docs/2019/Nota_Tecnica_Pacote_Anticrime.pdf>.

[5] Veja, a exemplo, que o perfil médio do apenado brasileiro é de homens (96,3%), que estudaram, no máximo, até o ensino médio (83% ) e negros (67%). Acesso em <https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/01/18/Qual-o-perfil-da-popula%C3%A7%C3%A3o-carcer%C3%A1ria-brasileira>.

[6] Como colocou o sociólogo Gabriel Feltran, autor do livro Irmãos: uma história do PCC, da coletivização do crime. Acesso em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-01/prender-pune-pessoa-mas-favorece-faccoes-diz-especialista>.

[7] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1931445-policiais-matam-e-morrem-mais-no-brasil-mostra-balanco-de-2016.shtml

[8] https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/04/04/brasil-tem-maior-numero-absoluto-de-homicidio-do-mundo-diz-oms/

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