As relações sociais virtuais e a falta que a realidade faz
Natal, RN 28 de mar 2024

As relações sociais virtuais e a falta que a realidade faz

22 de maio de 2018
As relações sociais virtuais e a falta que a realidade faz

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Qual o nome da sua mãe? O primeiro nome do seu pai? O mês em que faz aniversário? Seus últimos três dígitos do CPF? Esse é o grau de intimidade que só um caixa automático pode te oferecer, assim de cara, hoje em dia. Confesso que, depois de tantas revelações, por vezes imagino que, a qualquer momento, é possível que ele até me convide pra sair.

Muito além dessas conversas diárias que travamos com máquinas, os aplicativos e outros canais modernos de comunicação também revolucionam, a cada dia (ou a cada microssegundo), as relações sociais virtuais, e aterrorizam gente como eu, que nasceu no século passado, acostumada e apegada, emocionalmente, à antiga comunicação analógica.

Mesmo assim, um dia desses, e sem querer apelar para o Tinder (nosso novo Mirc, que ainda não ousei experimentar, apenas por preguiça), cheguei a perguntar, sem cerimônias, pra Siri se ela podia me arrumar um namorado. Por incrível que pareça, a moça sugeriu que eu fizesse um curso, porque lá talvez encontrasse alguém com interesses semelhantes aos meus. O que prova que até os aplicativos têm consciência de que precisamos de relações sociais reais.

Apesar de compreender a inevitável transformação das relações sociais, resisti o quanto pude até ceder ao apelo da minha filha para ter um celular, uma conta no facebook, whatsapp e instagram, não necessariamente nessa ordem. O primeiro aparelho, nem mesmo fui eu que dei.

Cedi à pressão somente depois de uma longa conversa, com argumentos e teses bastante convincentes apresentados por uma menina de quase dez anos. O maior argumento que ela usou foi não-verbal. Pedi pra que criasse um perfil e uma senha, e expliquei que eu precisava saber a senha. Foi nesse momento que percebi que ela poderia ter criado a qualquer momento o perfil sozinha, pois sabia como, mas não o fez.

Não digo que foi fácil, mas entendi que era necessário, para ela, naquele momento de descoberta de um mundo completamente novo que, se eu proibisse, somente tornaria ainda mais tentadora a descoberta. Optei por uma liberdade vigiada.

Muitas outras conversas intermináveis surgiram a partir desse monitoramento, que durou cerca de três anos, ou seja, até recentemente, quando atingiu o nível iniciante de uma maturidade virtual capaz de conquistar um certo grau de privacidade e individualismo.

Dessa época lembro agora de pelo menos um diálogo assustador que flagrei, quando ela tinha uns 12 anos e começou a “namorar” um menino na escola. Não me preocupei com o namoro, porque via que depois de ela ter aceito namorar, o relacionamento físico entre os dois passou de raro para quase inexistente. Funcionava assim: quando iniciavam um namoro, automaticamente deixavam de conversar pessoalmente. O papo era só online mesmo.

Me deparei com um desses papos, que acessei quando estava na sala de espera da dentista dela, que iniciava mais ou menos assim: “Marina, eu queria fazer com você uma coisa que eu fazia com minha ex-namorada”. Putaquipariu, cara! Eu estava prestes a surtar, num misto de vontade de matar o menino ou contar pra mãe dele, mesmo antes de desvendar o resto do diálogo, Mas tentei manter a compostura, e continuei a ler.

“É que, tô com vergonha de dizer, mas vou falar...” – dizia o incauto rapazinho, em tom ameaçador. Ao que ela nada respondia, para minha alegria e infelicidade dele. E concluiu: “é que eu queria andar de mãos dadas com você e lanchar junto, no recreio”, finalmente revelou (e eu li, aliviada), salvando a própria pele e recebendo de volta um simples “boa noite”, assim seco, de Marina, que considerou a exigência um insulto, provavelmente. O namoro acabou no dia seguinte.

Mas a história acendeu um alerta: será que estamos criando uma geração despreparada para as relações sociais reais? A verdade é que sinto falta daquele velho hábito de ficar em casa, balançando as pernas cruzadas, na espera ansiosa por um telefonema; ou de telefonar para alguém somente para ouvir a voz, quando então ainda era possível escapar anonimamente, tendo como cúmplice apenas os telefones fixos sem bina.

A nova geração sofre de uma ansiedade muito mais angustiante, já que movida pelo imediatismo dos microsegundos admitidos entre o azul que indica a visualização de uma mensagem nossa no whatsapp e a respectiva resposta, anunciada pelo famoso “digitando...”. E azar de quem, como eu, não domina a linguagem universal dos emoticons, e possui toda uma vida real fora do whatsapp e de outras redes sociais virtuais.

A exemplo do que acontece na minha comunicação com minha filha adolescente, volta e meia receberá uma cobrança arbitrária e ditatorial por não ter respondido imediatamente a uma mensagem. Essa cobrança vai desde a digitação do nome “mãe”, seguido de vários “MÃE (em letras garrafais, que assim eles acham que a gente ouve melhor)”, ou “MÃE, RESPONDE!”, até uma dezena de áudios desaforados e, como último recurso, zilhões de chamadas perdidas.

A aparente urgência dessas relações sociais virtuais provoca consequências reais que afetam nossa rotina. Como um verdadeiro desespero materno, por imaginar as piores situações de vida ou morte justificadoras dessa aflição em ser atendida, quando, na verdade, na maior parte das vezes, ela está apenas preocupada com a bateria do celular, que está perto de descarregar.

Sem falar nos inúmeros mal-entendidos causados pelo uso exclusivo da palavra escrita, sem emoticons, assim, seca, que, por mais bem redigida que seja, sempre estará sujeita às mais diversas interpretações, por não ter o auxílio do tom de voz adequado ou de gestos que demostrem a real intenção da mensagem.

Não quero aqui fazer uma apologia hipócrita pelo não uso das diversas formas de comunicação virtual, que nos aproximam ao mesmo tempo em que nos afastam, numa dicotomia que deve ser objeto de muitos estudos de especialistas mais capacitados para tratar desse assunto com a devida propriedade.

Quero só alertar a essa nova geração hiperconectada que é preciso redescobrir as relações sociais reais e praticar mais as conversas ao pé do ouvido, o olho no olho, o poder do toque, do abraço, do afeto, de tudo que desperte os sentidos e concretize os sentimentos, que jamais podem ser expressos ou substituídos por emoticons

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