Carolina ecoa em nós
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23 de março de 2018
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“Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade

Nascida em 14 de março de 1914 no município de Sacramento, Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus viveu boa parte de sua vida adulta na favela do Canindé, São Paulo, onde educou seus três filhos com o pouco que conseguia enquanto catadora de lixo. Conhecida por suas obras Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina escrevia sobre o cotidiano na favela e transbordava nos papéis suas aflições e anseios.

Sua principal obra, Quarto de despejo, leva esse nome, pois, segundo a escritora: “quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres somos os trastes velhos”. Em seu diário, Carolina mostra ao leitor, numa perspectiva enquanto favelada, a realidade crua e o dia-a-dia da favela:

Condói-me de ver tantas agruras reservadas aos proletários. Fitei a nova companheira de infortúnio. Ela olhava a favela, suas lamas suas crianças paupérrimas. Foi o olhar mais triste que eu já presenciei. Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da vida. ...Há de existir alguém que lendo o que escrevo dirá... Isto é mentira! Mas, as misérias são reais.”(p.45)

Carolina escrevia sobre a favela manifestando suas dores e miséria. As linhas que traçava sobre o sua rotina denunciavam e gritavam as condições de penúria de um povo. Sob sua visão, os moradores de uma favela nada mais eram que os “troços” abandonados no quarto de despejo. Com seu depoimento, Carolina, infelizmente, permanece muito presente nas histórias de vida de inúmeras mulheres e homens negros favelados. Sua história ainda ecoa em nós.

Além de descrever a rotina da favela, sua narrativa, cheia de pesares, revela suas vivências enquanto mulher negra e mãe solo. Apesar de quase 60 após o lançamento da primeira edição de seu diário, seu testemunho se assemelha e ainda atravessa a história de tantas outras mulheres negras que lutam para sobreviver sob condições precárias como as quais vivenciou na favela do Canindé. As obras de Carolina de Jesus nos comove não só por revelar uma realidade atual de nossas vidas nas favelas brasileiras, mas principalmente por desnudar a história das mulheres que vieram antes de nós e formaram quem somos. As vivências de Carolina são também vivências de nossas mães e avós que galgaram caminhos tortuosos.

“... Quando estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que eles são melhores do que nós? Será que o predomínio de lá suplanta o nosso? Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação única? Será que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela?”(p. 41)

No trecho, transparece seu desassossego diante da fome de suas crias e sua inquietude perante a realidade. Mesmo tentando fugir de seus pensamentos, a fala de Carolina é marcada por uma desesperança que não enxerga no futuro uma felicidade. Seus dizeres abarcam diversas narrativas de mulheres negras que encaram sozinhas a miséria e enfrentam o mundo para educar seus filhos. Quantas Carolinas você conhece?

Apesar de ter alcançado uma grande visibilidade tendo vendido mais de 1 milhão de exemplares com Quarto de despejo, obra também traduzida para 14 idiomas, sua literatura é renegada por falas que tentam deslegitimá-la enquanto escritora, falas essas que reforçar o estereótipo de “negra favelada que escrevia livros”.

Sua literatura marginalizada e desobediente, por não seguir padrões linguísticos, ainda é alvo de debates e ataques racistas, disfarçados de crítica literária, que não aturam uma mulher negra, favelada e ex-catadora de lixo como capaz de escrever. É muito comum vermos posicionamentos do tipo “se essa mulher escreve, qualquer um pode escrever”, que tentam desqualificar suas obras e a própria escritora.

Maria Carolina de Jesus tirava da sua realidade combustível necessário para conceber sua obra. Como muitos autores e autoras, tinha em suas vivências a inspiração vital para dar fruto a sua literatura que denunciava e denuncia a miséria presentes das favelas numa narrativa lancinante.

Carolina, mulher negra e escritora faria nesse mês de março 104 anos.

REFERÊNCIAS: JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. Edição Popular, 1963.

TELEXA, Lúcia Izabel dos Santos. Quarto de despejo; Diário de uma favelada: Carolina vai à escola. 2006. 65 f. TCC (Graduação) - Curso de Especialização Ead Gênero e Diversidade Escolar, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/173799>. Acesso em: 22 mar. 2018.

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