Cidadania: a busca por pertencer
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Cidadania: a busca por pertencer

3 de setembro de 2017
Cidadania: a busca por pertencer

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Tendo sido convidado pelos que fazem o Saiba Mais para escrever, todo domingo, um artigo de opinião abordando a temática da cidadania, creio que seria interessante iniciar pela discussão do próprio conceito. Afinal o que significa ter cidadania? O que significa ser cidadão? O que define se alguém possui ou não cidadania?

A palavra cidadania deriva da palavra latina civitas que significava cidade. Ou seja, na Roma Antiga cidadania era pertencer a uma cidade, era ser membro do corpo cívico de uma dada cidade. Cidadania, assim como cívico remetem a palavra civis que se referia aos homens que compunham o corpo da cidade. As pessoas na Antiguidade não pertenciam a países ou nações, pois eles ainda não existiam. Mesmo vivendo em um império, como era o romano, as pessoas estavam vinculadas, habitavam, se consideravam moradoras das cidades.

A cidade era vista como um corpo formado pelo conjunto de seus cidadãos, a tal ponto que, na Grécia antiga, os cidadãos levavam o nome de sua cidade. Por exemplo, o famoso filósofo e matemático Tales de Mileto é assim chamado porque nascera e pertencia ao corpo de cidadãos da cidade de Mileto, uma colônia grega que ficava na atual Turquia. Mileto não era seu sobrenome, como podemos pensar, mas o nome de sua cidade. Um cidadão grego e romano era inseparável de sua cidade a ponto de um dos maiores castigos a ser infringido a um grego ou a um romano que, por ventura, cometesse um crime, era seu banimento, expatriação ou expulsão de sua cidade.

Mas eu falei que civis nomeava os homens que compunham o corpo de uma dada cidade, que formavam, portanto, sua cidadania. Sim, pois só os homens adultos, livres e proprietários de terras eram considerados cidadãos. A cidadania antiga era, portanto, bastante limitada e excludente. As mulheres, as crianças, os estrangeiros, os não proprietários e os escravos estavam alijados da cidadania, não faziam parte do corpo da cidade, que era um corpo masculino e aristocrático. A cidade era pensada como um conjunto feito de carne e pedra, mas nem todos os corpos pertenciam a cidadania ou faziam parte do corpo da cidade.

Mas o que dava particularidade a esses corpos que compunham a cidadania? Eles possuíam direitos políticos, eles eram dotados do direito de votar nas assembleias e de ser votados para ocupar cargos públicos. A cidadania, portanto, desde a Antiguidade se refere à posse de direitos políticos, à posse de prerrogativas no interior do todo político que é a cidade. Ser cidadão é gozar de direitos, mas, por outro lado, isso implicava também arcar com deveres, como: o de governar e defender a cidade.

A palavra cidadania vai ser retomada quando, na passagem da Idade Média para o mundo moderno, a burguesia – classe social composta por comerciantes, artesãos, rentistas – vai ganhando espaço no interior da sociedade à medida que as relações comerciais e a produção industrial começam a se expandir e a gerar uma acumulação de riquezas que dá poder econômico a esses grupos sociais que, ao contrário da maioria da população, habitam os burgos, por isso são chamados de burgueses, ou seja, habitam as cidades e não o campo.

Embora, com o passar do tempo, a burguesia tivesse cada vez maior poder econômico, ela não possuía direitos políticos que era um monopólio da nobreza e do clero. Por serem moradores das cidades, a luta política da burguesia se inicia pela busca de liberação dos núcleos urbanos das pesadas obrigações e das limitações impostas pelos senhores feudais. Se uma cidade integrava as posses de um barão, se fazia parte de um baronato, todos os seus habitantes deviam pagar tributos e prestar homenagens, favores e obedecer às ordens do senhor que era o seu senhorio. Essa luta pela liberação das cidades tornou-se, portanto, luta por cidadania, por se viver numa cidade livre, onde seus moradores, os cidadãos, também seriam livres dos vínculos e obrigações feudais.

Nos séculos XVII e XVIII, com as revoluções burguesas na Inglaterra e na França e com a independência das treze colônias inglesas na América – que vieram a formar os Estados Unidos – a burguesia assume definitivamente o controle político das nações que haviam se constituído a partir do século XIV. Implantando uma forma republicana de governo ou transformando as monarquias absolutas em monarquias parlamentaristas – onde o rei tinha os poderes limitados por Parlamentos e pela vigência de uma Constituição – introduz-se a prática do voto, da escolha dos representantes por meio do sufrágio. A palavra cidadania tem ampliado o seu sentido, não estando mais ligada agora ao espaço de uma cidade. Ser cidadão é agora ter direitos políticos e deveres cívicos no interior de uma nação.

No século XIX, nenhuma nação contava com a vigência do sufrágio universal: as mulheres continuavam alijadas do direito ao voto, todos os analfabetos não podiam votar (e eles eram a maioria da população), os militares não possuíam o direito ao voto, em muitos países nem os membros do clero católico votavam (uma forma de reduzir o poder da Igreja). A cidadania continuava a ser limitada e excludente.

Adotava-se o voto censitário, ou seja, se fazia um censo para saber quais os homens eram alfabetizados e proprietários e qual o nível de renda de cada um. Conforme as posses os homens eram considerados eleitores de primeira ou de segunda classe, uns podendo votar diretamente em seus candidatos a governantes, outros apenas votando nos eleitores que iriam votar por eles.

Com a criação do chamado registro civil, logo após as revoluções burguesas, a noção de cidadania ganhou imediatamente um outro significado. Agora, ser cidadão era estar legalmente registrado e vinculado a uma dada nação. Como a prática do registro civil era muito rara entre os pobres, esses, em grande medida, continuavam alijados da cidadania, mesmo nesse sentido estrito de estarem vinculados civilmente a um espaço nacional, de ter uma documentação que o fizesse nacional, já que continuavam amplamente marginalizados da cidadania política pela falta de letramento e pelo não acesso à propriedade.

Ainda hoje vemos os governos, em suas várias esferas, chamar de campanha de cidadania a disponibilização da confecção gratuita de dados documentos, notadamente da carteira de identidade. Um documento que é um registro nos órgãos policiais visando a fácil identificação de possíveis criminosos é apresentado como sinal de cidadania.

Ao longo do século XX, no entanto, a cidadania não só foi sendo estendida a todos os grupos sociais, como o próprio conceito de cidadania foi sendo ampliado, deixando de incluir apenas os chamados direitos políticos. As lutas políticas dos trabalhadores, das mulheres, dos grupos marginalizados foram fundamentais para que as exigências de letramento, da posse de propriedades e as diferenças sociais e de gênero fossem sendo progressivamente abolidas como critérios para o acesso aos direitos políticos.

Em datas muito diversas, nos vários países do ocidente, os vários grupos que compunham a sociedade foram tendo acesso ao direito ao voto, ao direito de votar e de ser votado, ao direito de participar politicamente das decisões nacionais, de constituírem partidos e outras formas de organização política como os sindicatos e organizações da sociedade civil, com vista a conquista de direitos. Os chamados movimentos sociais se constituíram em importantes atores na ampliação do acesso à cidadania política a todos os grupos antes alijados da vida pública.

No entanto, notadamente depois da Segunda Guerra Mundial, com a criação dos chamados Estados de Bem-Estar Social, a cidadania passou a incluir não apenas os chamados direitos e deveres políticos, mas também os chamados direitos e deveres sociais. Toda a legislação trabalhista e previdenciária, nascida da luta por direitos políticos e sociais por parte das classes trabalhadoras, passou a fazer parte dos direitos dos cidadãos.

O ataque que o governo golpista de Michel Temer faz aos direitos trabalhistas e previdenciários, por exemplo, se constitui em um ataque à cidadania, aos direitos dos cidadãos brasileiros. Todos os direitos sociais conquistados pelas mulheres, pelos negros, pelas minorias sociais, como a licença maternidade, as cotas raciais, as políticas de combate à violência e a discriminação contra as mulheres, o direito da celebração de parceria civil pelos casais homossexuais. São conquistas que podemos incluir na noção de cidadania.

Cada direito surrupiado da população é uma perda de cidadania, é uma derrota na luta por pertencimento a essa cidade ampliada em que hoje se constituem as nações e o próprio mundo. Desde a Segunda Guerra Mundial, com a criação de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), caminhamos na direção da construção de uma cidadania global, onde a cidade terá a dimensão do próprio planeta. À medida que enfrentamos problemas e requeremos direitos que devem ter dimensão global, também se exige responsabilidades compartilhadas, ou seja, deveres, para todos os habitantes do globo. O combate à miséria e à fome, o combate à ameaça nuclear, as medidas de preservação ambiental, de combate ao aquecimento global, o combate à todas as formas de discriminação e preconceito, o combate à xenofobia exigem o exercício de uma cidadania global.

Hoje nossas vidas, nossos corpos, não pertencem apenas a uma cidade ou a uma nação, somos corpos globais e globalizados. Nossas vidas não são mais decididas politicamente na ágora, na praça central da cidade. Hoje as decisões que afetam nosso dia a dia e podem decidir o futuro do planeta e da própria espécie humana se dão, cada vez mais, em fóruns globais. Nossas lutas, nossas reivindicações para pertencer, para fazer parte, para não ser deixado de fora de direitos e deveres, para não sermos marginalizados ou excluídos de direitos e obrigações coletivas, sentido mesmo de ser cidadão, nossa luta por cidadania não deve se dar apenas nas cidades ou nos países, embora elas ainda sejam urgentes e necessárias. Devem, no entanto, estar conectadas com as lutas por pertencer ao mundo, por uma cidadania de todos e em todos os lugares.

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