CRÍTICA: Sufoco
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CRÍTICA: Sufoco

10 de outubro de 2019
CRÍTICA: Sufoco

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Por Avelino de Lima Neto

Ao tomar o assento na plateia, um outro espaço se cria, uma heterotopia – como gostava de dizer Michel Foucault sobre alguns lugares. Na maioria das vezes, é preciso tomar um certo tempo para assumir a posição de espectador e deixar que chronos seja kairós. Isso inclui, como de costume, um certo distanciamento do entorno. Alguns dentre nós gostamos de chegar um pouco antes do espetáculo para nos ambientarmos, deixarmos que os sentidos se apropriem do espaço, fazer-nos participantes da experiência modificadora de si que cada peça, cada espetáculo de dança e cada concerto é.

Que ilusão! No espetáculo em questão, não nos aquietamos ao sentar. A respiração, ainda agitada pelo blá blá blá e pelo deslocamento que antecedeu o ingresso ao templo de Dionísio, não entrará num fluxo de tranquilidade. Se é verdade que do espectador se exige a mínima educação estética, na qual se inclui uma certa “disciplina”, nesse caso, a estratégia fracassa. Não controlamos a sensação que começa a ser suscitada em nós. A imersão se instala exatamente pelo pescoço.

Nada de disciplina. O que se instaura, pouco a pouco, é a selvageria – a dos sentidos e dos temas que começamos a vislumbrar desde os primeiros minutos. Essa imersão começa rapidamente em Pelo pescoço (2018), dirigido por Daniel Torres, com performance em dança de Ana Cláudia Viana. Tive a alegria e a sorte de assistir a obra por três vezes: uma na estreia, em novembro de 2018, por ocasião da abertura do V Colóquio Internacional Corpo e Cultura do Movimento; a segunda em março de 2019 e a terceira em agosto deste mesmo ano, todas na Casa da Ribeira, reduto potiguar de resistência artística.

Inicialmente, o foco de luz está apenas sobre Ana Cláudia Viana, cuja respiração é, nesse momento, lenta. O ritmo respiratório, porém, se acelera gradualmente, à medida que ouvimos uma conhecida trilha sonora, cujas letras evocam diversas situações de violência machista, misoginia e feminicídio (quem não lembra do escancarado atentado às mulheres do trecho “Então eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha”, cantado ingenuamente pela dupla Sandy e Júnior, nacionalmente repetido como um mantra mórbido pelos que fomos crianças nos anos noventa?). O corpo da bailarina se enrijece, seus dedos dos pés e das mãos se mexem milimetricamente, como se quisessem esmagar algo. Seus olhos miram a todos e a ninguém, ao mesmo tempo. Um olhar meio sem vida, de quem apenas respira, de quem está prestes, talvez, a desmaiar. De quem apenas, por algum motivo, se mantém viva.

É então que as veias de seu pescoço, visíveis aos espectadores mais próximos do palco, quase explodem quando, num grito, ela pede que parem de tocar as músicas. Um silêncio sepulcral se espalha sobre todo o teatro. Só então notamos os elementos do cenário: uma porta ao fundo; próximo ao centro, um carrinho de supermercado, uma cadeira, uma mesa antiga sobre a qual está um antigo aparelho de telefone e um espelho, ladeados por um jarro com uma comigo-ninguém-pode. Nas duas laterais, em oposição, uma bicicleta e um par de saltos altos; respectivamente. Dentro do carrinho, algumas bonecas, de tamanhos distintos, cada uma com o pescoço e a cabeça de girafa. Nesse momento já estamos, pelo pescoço, em pleno sufoco.

O vestido, levantado e pressionado sobre o rosto, forma uma espécie de máscara, delineando as linhas da face da bailarina e deixando igualmente visíveis as curvas do seu corpo. Estas últimas, na verdade, só podem ser entrevistas. Isto porque, ao levantar o vestido, notamos que quase todo o seu tronco estava rodeado por apertadas correntes. Pouco a pouco, não sem dificuldade, elas começam a cair, impulsionadas pelos sutis movimentos da dançarina. Essa queda rompe o silêncio na cena, e cada vez que uma parte dos grilhões parece não querer cair, a agonia toma conta de nós. Ao movimentar-se para trás, eles cedem, mantendo, contudo, a resistência provocada pelo peso no deslocamento em direção à porta. Sobre esta, projeta-se a sombra do corpo que se aproxima, meio que titubeando, pois a dançarina se move sem ver. O som provocado pelo arrastar das correntes por todo o espaço cênico parece imergir tudo na limitação física provocada por esse desconfortável acessório. Ao se livrar dele, porém, um outro movimento tem início.

A heterotopia anteriormente mencionada alcança seu ápice quando, de torso nu, vestida apenas com uma calcinha vermelha, na esteira das bonecas, a bailarina transforma-se no ser híbrido cuja cabeça é de girafa e todo o resto do corpo é de mulher. Agora estamos numa espécie de labirinto do Minotauro, com a diferença que a heroína é esse ser quase mitológico, e as correntes deixadas no chão indicam o caminho que ela não deverá seguir para sair do labirinto.

Apoiando as mãos no chão, com as pernas esticadas, a mulher-girafa vagueia elegantemente sobre a cena. A imponência, no entanto, tem rápido fim: como as bonecas, ela também finda dentro do carrinho de supermercado. Torna-se um objeto usado para o consumo, facilmente descartável, como o plástico. Seu corpo se contorce nesse espaço mínimo. O sofrimento e a angústia crescem a cada segundo que a bailarina permanece dentro do carro ou empurrando-o. Imaginamos que, em poucos instantes, também ela, como os objetos, será destruída. As dores de todas as mulheres feridas pelo pescoço a acompanham.

A variedade semântica da palavra plástico permitirá, entretanto, uma readequação da bailarina e de toda a performance. Anteriormente, ela havia se sentado ao lado das bonecas, dispostas lado a lado, diante da plateia. Depois desse processo de identificação, ela se livra da cabeça de girafa e desenha uma nova mulher na porta, ao fundo do cenário. Nesse instante de epifania da plasticidade da subjetividade humana em sua capacidade de refundar-se, podemos notar com mais intensidade alguns elementos da incursão de Daniel Torres na experiência do feminino.

As escolhas de objetos, o figurino, a iluminação, as cores – sobretudo para quem conhece o seu trabalho como desenhista, cujos traços se mostram no desenho sobre a superfície da porta – atestam a presença do diretor e produtor cultural potiguar. Esses elementos encontraram, no tema do feminicídio, uma maneira de se materializar cenicamente, pela primeira vez, na exposição Pelo Pescoço, instalada em algumas galerias no ano de 2017[1]. Agora, com Ana Cláudia Viana, o diretor mostra uma saída coreografada para as tantas girafas desenhadas.

Depois de projetar a própria sombra na porta, de desenhar-se nela com certa ânsia e de dispor-se ao lado deste desenho, ladeada pelas girafas, é hora de dar vazão à vida. Num ímpeto de coragem, a bailarina retira a porta dos seus suportes e sustenta-a sobre as costas quase até a lateral direita do palco. Deita-se, posteriormente, sobre ela, contorcendo o próprio corpo, quase como num orgasmo, naquela que foi, por tanto tempo, a abertura pela qual ela sonhou passar para se livrar do sofrimento. A porta tornou-se um portal no universo heterotópico em que nos encontramos. Irradiante – o brilho está no seu corpo através do glíter, mas também em seu olhar iluminado –, ergue-se uma outra mulher.

Agora já não vemos os olhos entristecidos do início do espetáculo; a vida pulsa na sua mirada, nas suas pernas, nos seus braços, seios, mãos, dedos e – como não poderia deixar de ser – na respiração ofegante de esperança. Ágil, como quem sabe que precisa cumprir um compromisso assumido, a bailarina calça o salto alto. Com uma comigo-ninguém-pode em um jarro, disposto na sua cabeça de modo semelhante à cabeça da girafa, ela olha demoradamente para a plateia, num convite que nos inunda de vida e de força. Em seguida, encaminha-se com elegância e passos firmes ao centro da cena, acompanhada de uma canção cujas primeiras notas, gradualmente, são audíveis.

Ao som do cavaquinho e da percussão, ela para: perna esquerda mais à frente, a direita mais para trás – como um suporte de quem usará o corpo para a guerra –, mãos na cintura. Ela atira sobre nós, com seus pés, o samba Vai passar, de Chico Buarque. O pescoço segura firme o jarro com a comigo-ninguém-pode, qual coroa de uma rainha cuja natureza é capaz de se refazer, como as plantas que renascem. É só nesse momento que respiramos tranquilos, e o sufoco, aquele que nos deixou engasgados desde o início do espetáculo, encontra escape.

O estandarte do sanatório geral contamina os espectadores dessa louca esperança, tão necessária nos anos obscuros da composição de Chico Buarque e nos nossos dias. Para quem esperava uma tragédia à la Virgínia Woolf, cujos passos se encaminham vagarosos e decididos para a morte na cena eternizada por Nicole Kidman em As horas (2002), aqui os passos de Ana Cláudia Viana indicam, com resolução, um outro caminho: aquele da pulsação vibrante da vida-dança, da vida dançada. Dancemos, senão estamos perdidos, como diria Pina Bausch, é a legenda que daríamos aos últimos momentos da performance.

Vale dizer que, quem acompanha o trabalho da bailarina cearense, há tantos anos habitante de Natal, também reconhece os traços por ela impressos em suas interpretações e (re)criações da experiência do corpo feminino, manifestos em algumas obras coreográficas de outros tantos diretores, como em Pequeno mundo vermelho (2016)[2]. Seu corpo miscigenado, brasileiro, de mulher de meia-idade, é seu laboratório. A partir dele, ela – bailarina e pesquisadora – e seus diretores produzem gestos que fissuram a realidade e, em suas frestas, apontam cenários alternativos. Exemplo disso foi a saída do palco com a liberdade da bicicleta, por ela usada para circular o palco e dele partir, seminua, no fim do espetáculo, contrapondo-se à prisão do carrinho de supermercado.

Essa saída triunfal do corpo, que sente não mais os grilhões ao seu redor, mas o vento, faz novamente a respiração ficar ofegante, e o sufoco retorna. Agora, porém, estamos sufocados porque não paramos, como Ana Cláudia, de dançar. Parafraseando Elza Soares na canção A mulher no fim do mundo (2015), a multidão de mulheres convocada pela bailarina continuará a resistir, dionisiacamente, com “lágrima de samba na ponta dos pés”. Ana, Elza, Pina, Marielle, Ágatha, Cássia, Dorothy, Greta... todas elas são mulheres-dançarinas do fim do mundo e da criação de um outro.

Avelino A. de Lima Neto é professor

[1] http://portal.ifrn.edu.br/campus/natalcidadealta/noticias/galeria-de-arte-recebe-nova-exposicao

[2] Anízia Marques Cia de Dança, com direção de Clébio Oliveira.

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