É carnaval! A gente não aglomera neste ano, não se molha de suor e cerveja nem se beija na porta da igreja, mas ainda assim a gente carnavaliza. E nesse sentimento vou brincar carnaval com meus livros recentemente adquiridos e cujo tema tem tudo a ver com o espírito dionisíaco do momento: poesia e erotismo, em caldeirão temperado com uma pimentinha a mais: o ser feminino.
Fico feliz a valer vendo o quanto de livros de poesia vieram ao mundo por estes dias, sobretudo “crias” de colegas de escrita destas terras potiguares, mulheres autoras: Anchella, Marize, Marina, Gessyca... Saboreando uma taça de vinho, comento então duas obras dessas bacantes, sem maiores pretensões de análise: Cicuta e Cilício (Guaratinguetá, SP, Penalux, 2020), de Jeanne Araújo, e Vermelho Fogo (Natal, RN, Offset, 2021), de Regina Azevedo.
Antes, porém, pensemos sobre esse mistério chamado “erotismo”. As gavetas conceituais muitas vezes incomodam, mas elas bem nos ajudam a organizar o pensamento crítico sobre a realidade. Nesse sentido, José Paulo Paes, no ótimo Poesia erótica em tradução (uma compilação de poesias que traz os gregos antigos, passa pela poesia provençal e descamba nos modernos, dançando com Rimbaud, Baudelaire e Neruda), talvez possa lançar alguma luz. Ainda que possa ser chamado de um livro de tradição “falocêntrica”, é bastante pertinente a observação do poeta e tradutor de que “Supor que um poema erótico digno do nome de poema vise tão-só a excitar sexualmente os seus leitores equivale a confundi-lo com pornografia pura e simples”. E para uma maior precisão ainda sobre o que seja o erotismo, José Paulo Paes cita Georges Bataille: um “interdito criador de desejo”.
Assim, não tem carnaval, mas a vontade de prazer permanece e nos espreita em forma de livro.
Primeiramente, eu diria que o desejo nos espreita de modo sutil em Regina Azevedo. Embora o título, a cor e a ilustração da capa estejam necessariamente associadas imediatamente a elementos da ordem do desejo e da passionalidade (ai, esta carne!), eu não me atrevo a dizer que este seja um livro de poesia erótica, embora ela esteja lá, em poemas ótimos como “Tomar Catuaba com Você” ou este, meu preferido:
LÍNGUA
li um texto
com meu namorado
e agora é me come pra cima
me come pra baixo
é que a vida inteira
tentamos fincar bandeiras
enquanto podíamos sambar
mas agora ele diz
me encoxa
e eu adoro
claro
fico logo molhada
com essa ideia
de sobrepor camadas
de fazer da língua
a própria bala
Bravo, Regina! Já o disseram, aliás, Marcelino Freire e Nicholas Behr, que assinam a orelha. Uma poesia que não é só exclusivamente erótica, mas sim atravessada, em seu lirismo, por uma atitude bélica e uma atitude humorística também, como em outros poemas do livro, de muitos matizes para além do erotismo (o recado que ela dá ao presidente me parece um primor de poema engajado!).
De maneira mais contundente me parece ser o erotismo em Jeanne Araújo. O título, por si só, é bombástico, como quem sugere um “tudo ou nada” ligado às várias facetas líricas em torno da mulher que sofre e goza – aceita, padece, estremece em êxtase de corpo místico, e goza! Um dos poemas que me plange nessa direção de sensação:
Eis minha prece, um poema descarnado
separado de meus ossos em agonia
mãos em concha, ofertório extenuado
eis meu amor extravasado em litania
Toma-o como a um espinho ou cilício
seja tua minha alma enamorada
desdobrada em afetos tão ilícitos
ser tua égide, teu escudo, tua adaga.
Bravo, Jeanne! Com essas pitadas de agonia e êxtase, de luz e sombra tão barrocas (embora a linda capa traga pintura de Edvard Munch...), configura-se o prazer erótico também em prazer estético pelo que os versos sugerem.
Evoé, meninas!