Da senzala à prisão contemporânea: um depósito de negros
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Da senzala à prisão contemporânea: um depósito de negros

24 de novembro de 2018
Da senzala à prisão contemporânea: um depósito de negros

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Nesta semana da consciência negra, de reflexão acerca do mito da democracia racial no Brasil, não podemos permitir passar despercebida a transformação sofrida pela senzala colonial até os dias de hoje. A estrutura utilizada para comportar os escravos, com pouco espaço, frio, doenças, grades, medo e sofrimento é nos dias de hoje reproduzida nas estruturas das nossas prisões. Para quem já teve a oportunidade de visitar uma prisão, por qualquer motivo, pôde perceber esta importante característica do sistema de Justiça brasileiro: trancafiar negros e limpar as ruas. Mas, somente negros cometem crimes? Busquemos, então, compreender a complexidade da questão.

Mau cheiro, suor, gritos, pedidos de socorro, e muitas doenças, são características comuns a quase todas as prisões brasileiras. Mas existe uma característica que até os dias de hoje é muito pouco discutida e bastante invisibilizada: a população carcerária é majoritariamente negra. Para quem visita uma prisão com severo descaso estrutural, remete-se facilmente a uma senzala colonial. Negros sentados no chão, suados, doentes, com fome, sem acesso à defesa, sem documentos, aguardando apenas as providências ou indulgências do Estado.

Os negros são os maiores criminosos no Brasil? Não. Mas os negros são os mais condenados quando cometem crimes. Pode parecer ficção, mas pesquisas documentais realizadas nas sentenças judiciais por todo o país, demonstram que réus negros são mais facilmente condenados à prisão do que réus brancos que cometeram o mesmo crime. O que isso significa? Significa que a nossa estrutura de Justiça reproduz exatamente os mesmos valores que permeiam o imaginário social, as estruturas sociais fundamentais.

A manutenção do autoritarismo e da violência social expressos em diferentes formas - a segregação, preconceito, negação de direitos, opressão, agressões, demonstram que apesar do passar do tempo, do esforço de diferentes agentes sociais individuais e coletivos, do empoderamento da luta pela democracia racial nos últimos 50 anos, não foram suficientes para reduzir e aniquiliar as forças comprometidas com o conservadorismo e autoritarismo que constituiu o nosso passado colônia escravista. Cada prisão construída, é uma senzala construída.

Kant de Lima, Sérgio Adorno e tantos outros cientistas sociais demonstraram de diferentes formas que brancos e negros cometem crimes na mesma proporção, mas a caneta do juiz pesa infinitamente mais para réus negros. Réus brancos têm uma chance maior de responder pelo crime cometido em liberdade.

As desigualdades sociais já são, desde o descobrimento, causa e consequência da segregação racial. Após o “fim” da escravidão no Brasil, os escravos domésticos ocuparam os territórios marginais nas cidades e permaneceram trabalhando em situações análogas à escravidão. Já os escravos trabalhadores do campo, partiram em busca de terras que pudessem plantar e dela viver. Descobriram um país loteado, repleto de proprietários de terra sedentos por mão de obra sem valor. Encontraram os ex-escravos. Nos dias de hoje, a mesma estrutura social se perpetua. Com algumas poucas transformações, some-se a este cenário os avanços do mercado de drogas, o racismo institucional que impede o exercício da cidadania negra, a discriminação de religiões de matriz africana.

Segundo o IBGE, a população que habita as áreas mais precárias das cidades permanecem sendo negra, de baixa renda, de pouca escolaridade e de trabalho precário. No interior do Brasil, o trabalhador do campo, o trabalhador braçal, permanece sendo negro, desprovido de terras e instrumentos de trabalho, detentor única e exclusivamente do seu corpo, ou na linguagem marxista, da sua força de trabalho.

Incrustado no Sistema de Justiça, o racismo passeia entre os agentes policiais (que em sua maioria são negros e naturais de famílias pobres e periféricas), agentes investigativos, agentes judiciários e nos próprios magistrados. O racismo não se restringe apenas ao espaço privado, mas reflete na esfera pública, nas instituições do Estado. A luta por esta reformulação começa pelo acesso de negros aos espaços ocupados majoritariamente por brancos, pela formação e viabilização de condições de estudo, pela ocupação de espaços na política, pela garantia da representatividade.

Muitos pensam que políticas afirmativas aprofundam as desigualdades e criam uma segregação racial profunda. Mas profunda ela já é. O problema é a invisibilidade. Lutemos por visibilidade, por cidadania, por políticas e garantias de direitos a todos, especialmente a quem nunca teve acesso a eles. Precisamos construir outros modelos de prisões, baseadas na resignificação da vida, na justiça restaurativa em substituição da criminalização da pobreza e da população negra. Lutemos pelo fim definitivo das senzalas.

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