Cheiro de café suspenso no ar, livro novo anunciando um mundo de possibilidades, fazer cócegas no filho, cantar alto aquela música que lhe faz lembrar de você mesma: eu poderia citar tantas paisagens interiores que desaprendi a enxergar com o tempo, mas a memória me falha, e já não sei se realmente era eu aquela pessoa tão conectada ao universo, às coisas naturais e boas, aos seres lúdicos do dia a dia. Ou se sempre fui assim: crua e metódica, espécie de poema inacabado com excesso de arestas.
Até que ponto vale a pena neutralizar-se de si mesma, sob o pretexto de sobreviver? De que vale uma sobrevida quando, para tal, é preciso abandonar o Ser? Eu não saberia explicar com bases filosóficas, apenas sei que perder o que somos em meio às agruras da estrada, negar-se para caber, sobreviver às quedas somente para dizer que resistiu à vontade de esvair-se, não é de todo uma vitória. Pois que estar vivo sob essas condições é uma maneira muito pobre de estar no mundo.
Resolvi voltar. Voltar a ser uma coisa pulsante, viva, única. Uma coisa não como um objeto, mas um ser palpável de sonhos inesquecíveis, ainda que sob a ameaça de uma memória vã, que só lembra, da infância, as quedas, um medo quase irracional de não agradar o meu pai, e mais ainda de ver as lágrimas de minha mãe rolando pela escadaria. E, para voltar, impossível não escrever. Já que é escrevendo, que as partes mais lúdicas e lúcidas de mim se desfolham, uma a uma, densas, líricas, entre obscenas e sagradas; libertas, não mais ilhadas.
Feliz em estar aqui, buscando lembrar de uma das coisas mais bonitas que existe dentro de mim: as palavras. As palavras e seus mistérios: amplidão de criança voando em roda gigante, surpreendida com a força de suas asas; esquecer os sonhos da noite que passou e tomar o café da manhã ostentando um jeito úmido de quem, ainda que esquecida, viveu. As palavras e suas revelações: o prazer cálido de ver um poema novo nascer; cair da bicicleta e se levantar, contente com a descoberta de que toda dor tem seu fim.
Há uma certa ternura na viuvez, de quando morrem alguns sonhos e se arquitetam novos quereres. Há certo lirismo em torno das garças que sobrevoam o açude vazio. Meu açude está recebendo chuva nova, ainda baldeadas as águas, inevitável é a lama nos pés. No entanto, está enchendo, e a água nova apaga a velha chama do imenso nada que outrora tomou conta dos poemas, dos dias, do coração oco e pálido. Água nova, me encha de sede e sonho. Água nova, me transborde, que minha cauda de sereia quer voltar a dar o ar da graça por aí. Nadar, não mais Nada. Voar, não mais afundar. Ficar e nunca mais partir.