Desculpe, mas não dá pra não levar pro lado pessoal
Natal, RN 19 de abr 2024

Desculpe, mas não dá pra não levar pro lado pessoal

1 de novembro de 2018
Desculpe, mas não dá pra não levar pro lado pessoal

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Os manuais de ciência política explicam que democracia é o regime do conflito. Sob seu guarda-chuva convivem as mais diferentes expressões de sociedades plurais. Naturalmente, nem sempre os interesses representados por essas expressões são os mesmos, daí aparecendo a política enquanto canal de mediação.

Aristóteles explica que a política é própria do ser humano, que se realiza ao discutir entre si os assuntos de interesse coletivo. Esta concepção teve espaço até o esplendor da filosofia moderna em meados do século XVIII, ocasião em que o referencial passou a ser o indivíduo. A partir desse momento, a política deixou de ser algo próprio da condição humana para se tornar acidental, artificial, fora do individualismo contratualista que ganhava terreno.

Esse novo ideário defendia que o indivíduo se realiza de si para si. Se no meio do caminho aparecem outras pessoas, paciência. Foi nesse contexto de convivência forçada que o Estado surgiu enquanto espaço por excelência para aparar as arestas do reino da libertinagem e do individualismo próprios da sociedade civil.

Mesmo no reino da liberdade a própria liberdade tem limites. Rousseau ensina que a liberdade natural e sem freios - o “puro impulso do apetite” - representa a escravidão, enquanto a liberdade civil, limitada pela comunidade política, é que é a verdadeira liberdade, impossível de ser concretizada se não abrirmos mão de uma parcela sua para evitar que nos engulamos.

O ato de divergir, então, é visto com bons olhos na medida em que o debate não envolve alguns temas acerca dos quais há certo consenso, fruto muitas vezes de avanços civilizatórios. A discussão sobre se o correto é biscoito ou bolacha, por exemplo, é obviamente diferente de ser contra ou a favor do racismo, da homofobia, da violência de gênero, etc.

Algumas pessoas costumam defender seus pontos de vista sob a roupagem formal de que se trata de sua opinião. Nessa perspectiva, ser racista e achar que é bolacha ao invés de biscoito seriam equivalentes. Ainda, é bom sempre termos em mente que, se você é uma liderança, suas palavras equivalem ao próprio ato em si, pois estimulam seus seguidores a praticá-los. Uma coisa é defender atrocidades na ceia de Natal, outra é professá-las para milhares ou milhões de pessoas.

Faltando uma semana para as eleições, o presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou para uma plateia ensandecida que varreria os vermelhos do Brasil. Seu destino seria o exílio ou a cadeia. Quem seriam esses vermelhos? O empresário Henry Maksoud? O guerrilheiro Carlos Marighella? O fato de se situarem em extremos ideológicos opostos não impediu que fossem colocados no mesmo balaio pelo regime militar. Adivinhe qual era a cor do balaio.

Isso prova que essa zona cinzenta de vermelhidão faz com surja um daltonismo que acaba não poupando também os verdes, azuis e amarelos. Nem Carlos Lacerda, que se entusiasmou com o golpe de 1964, escapou da perseguição dos militares. Lacerda, um anticomunista de carteirinha, foi avermelhado pelos generais ao estilo da famosa canção interpretada por Fafá de Belém.

Acredito que eu esteja entre os vermelhos. E dói, dói bastante ver pessoas queridas assinarem embaixo de um discurso que prega minha eliminação juntamente com a de todos e todas que se enquadram no degradê rubro - sem falar nos segmentos a quem Bolsonaro vem desde sempre direcionando seus ataques: mulheres, negros, movimentos sociais, homossexuais, indígenas, quilombolas, etc.

É difícil não levar para o lado pessoal. É difícil separar a política das relações afetivas. A construção dos afetos nasce não apenas das relações pessoais, mas da forma com que as pessoas se colocam diante do mundo. A sociedade civil que se encontra nas praças, segundo Aristóteles, é uma extensão do que se passa em casa. Não são esferas incomunicáveis. Muito pelo contrário. Como, em nome da boa convivência familiar, fazer pouco caso da ideia de que “gosto de você, mas vou votar no candidato que defende que você desapareça”?

A resposta a essa questão costuma ser a de que tais ameaças não passam de bravatas. Mas quem garante? Quem fixa os limites da fanfarronice? A Constituição? Na década de 30 acreditaram que Franz von Papen, representante da aristocracia alemã, domaria Hitler, garantindo que o ditador – um sujeito bufão e caricato - tivesse seu potencial autoritário castrado pela Constituição de Weimar. Ledo engano. O século XX é pródigo em exemplos de que não há constituição que resista a autoritarismos.

Talvez a grande particularidade destas eleições esteja no fato de que a disputa adentrou ainda mais no campo das relações afetivas e familiares. Em eleições passadas foi até possível reatar amizades. Todavia, nenhum candidato desde a redemocratização, por mais apelativa e baixa que tenha sido sua campanha, defendeu expressamente o extermínio e a eliminação de quem pensava diferente. Opositores históricos do PT, a exemplo do tucano Alberto Goldman, perceberam isso e declararam voto em Haddad. A necessidade de derrotar Bolsonaro quebrou os muros da mera opção eleitoral e passou para o campo da própria sobrevivência.

Portanto, não leve a mal se o seu irmão, irmã, sobrinho, sobrinha, primo ou prima levou para o lado pessoal a sua entusiástica adesão ao bolsonarismo. Você conseguiu eleger seu candidato e certamente está bem satisfeito com isso. Ele/a, por sua vez, está com medo de ser alvo das porradas que o presidente eleito vem defendendo e estimulando. Havia a legítima expectativa de que, diante dessa profusão de ameaças, você se sensibilizaria ao invés de tentar contemporizar promessas de exílio, prisões, fuzilamentos, mortes e espancamentos.

Atente que, um dia, você próprio pode ser categorizado como vermelho, a exemplo do que ocorreu com Carlos Lacerda e com outros nomes que apoiaram o golpe de 1964 e foram igualmente perseguidos, presos, mortos e exilados. Não se iluda. Vermelhos e azuis, coxinhas e mortadelas. Na “ponta da praia” há espaço para todo mundo.

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