Diga que vou VER a vida pelo retrovisor.
Natal, RN 19 de abr 2024

Diga que vou VER a vida pelo retrovisor.

24 de fevereiro de 2019
Diga que vou VER a vida pelo retrovisor.

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

 “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. [...]O pior naufrágio é não partir” Amyr Klink

Na década de 80 assisti as primeiras viagens de Amyr Klink em slide show. Gostava de ouvir suas aventuras. Fazia-me desejar ir para todos os lugares que minha imaginação pedia. E sempre vinham as lembranças dos grandes desbravadores resgatando o desconhecido. Cada palavra dita por Amyr Klink em seus livros e palestras sempre fizeram meu coração pular de entusiasmo.

Essa crônica tem trilha sonora. Ao fundo ouço “Encontros e Despedidas” de Milton Nascimento.

Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai
Pra nunca mais...

Escuto sempre as pessoas conjugando os verbos de partida – ir, vir, partir, conhecer, sair...

A TV fala da migração para Natal: enquanto uns estão indo em busca de algo, outros chegam na mesma cadência ou para ter qualidade de vida.

Um fluxo contínuo, curioso e complexo.

Corta para cenas de pessoas acenando no aeroporto. Algumas lágrimas. Olhares molhados, mãos que se desgarram...

Isso é muito antigo. Todos os séculos são protagonistas das despedidas. Mas ao pensar sobre partidas e corte de raízes, penso no filme documentário “Jaguar”, de Jean Rouch, de 1954. Jovens da Nigéria se juntam para buscar melhores condições de trabalho em Gana, na região do minério. Para iniciar a jornada, buscam os mágicos do lugar para saber se devem ir e quando devem partir. A viagem é um ritual de passagem de jovens em busca de vida melhor para sua comunidade. Foram orientados para se separarem no território de Gana e aceitaram o pedido.

No caminho, o jovem Jaguar consegue, com seu charme, um trabalho melhor. No final, que tem a duração de um ano, se juntam para retornar à comunidade e para o convívio dos amigos e família. Depois de um caminho turbulento, contam as novidades, compartilham suas experiências e isso modifica a vida de todos: de quem está na comunidade e de quem volta do caminho com sua nova história (o novo elixir).

A provocação se instala na comunidade. As imagens que são narradas pelos jovens que retornam são propulsoras de desejos e partidas. Todas as imagens pensadas e sonhadas explodem no espaço celestial do imaginário no qual acende o coração.

Na vida sempre recebemos chamados para seguir; nem sempre aceitamos. Precisamos sentir se eles estão de acordo com nossas percepções e sonhos. Muitas vezes nos deixamos levar e começa, nesse momento, uma série de lutas internas e externas que travamos com nossa vida. Se aceitarmos ou rejeitarmos o chamado, teremos em breve duas narrativas diferentes.

Na nossa vida em sociedade não há os bruxos e mágicos celestes que nos guiam.

Joseph Campbell, no livro “O herói de mil faces”, nos mostra como essa jornada funciona metodicamente. Recebemos o chamado para a separação – negamos ou assumimos. Se aceitarmos a partida, de imediato teremos que resolver vários problemas e atravessar o primeiro limiar. Isso vai nos causar muita reflexão e precisaremos de um tempo sozinho para continuar. Teremos muitas provas, muita ajuda, e veremos quem são os verdadeiros comparsas na jornada. Nessa nova travessia conquistamos o que fomos buscar. Na captura percebemos que precisamos de alguma forma voltar – retornar para mostrar nossa conquista para nossa tribo. Nesse retorno há muitos obstáculos e temos que vencê-los. Nesse momento nos sentimos o senhor de dois mundos.

Stuart Hall, numa entrevista incrível, diz que esse “desarraigamento”, um sentimento de ser de nenhum lugar, passou a ser a condição arquetípica do que ele chama de modernidade tardia. Desde cedo, Hall foi estudar na Inglaterra, deixou a Jamaica e todas suas raízes. No “Da diáspora: identidades e mediações culturais” diz que não se sente inglês, nem jamaicano, “Não sou nem nunca serei um inglês. Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diásporica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada”.

No segundo setênio de minha vida, ao fazer a árvore genealógica da família, descobri que minha família fazia parte de uma saga nova dentro de um país também novo. Nossos avôs, bisavôs, tataravôs, vieram de outros lugares.

No meu caso fugiram da dor da guerra e desceram no porto de Santos. Algumas histórias são tristes. Minha bisavó, por exemplo, perdeu toda a família no navio. Marido, filhos, eram ao todo sete pessoas. Só restou ela na entrada na imigração aos prantos. Não sabia para onde ir.

Meu bisavô, logo que a viu, a acolheu na chegada e se encantou por sua saga e força feminina. Muitas histórias como essas compõem nossas próprias histórias. Hoje não são tão comoventes e fortes como a dor que a guerra impõe aos corações famintos de acolhimento, com poros sedentos e muito frio. É muito frio. Tudo o que ouço sempre vem adornado com esse sentimento. Posso ouvir essas histórias no verão, e tão logo necessito de um chá quente.

Meu passado chegou ao paraíso. E o paraíso sempre é o lugar que acolhe ou que salva.

Tenho um grande amigo que quando sente inspiração para escrever, escreve em inglês. Ele foi salvo pelos norte-americanos. Era curioso, sempre foi estudioso. A arqueologia sempre foi seu grande amor. Aqui no Brasil aprendeu muito. Mas os norte-americanos são loucos por quem é curioso e dedicado. Bingo! Meu amigo foi acolhido. Deixou irmãos, pais, namorada, aconchego, seu mundo cotidiano, e aceitou a aventura e foi-se embora. Lá encontrou um poço cheio de possibilidades e muitas pessoas o acolheram na sua sede de saber. Hoje trabalha no EUA e quando sente inspiração escreve poesia e escolhe a língua inglesa. A organização das bibliotecas e laboratórios salvou seu coração sedento.

Estamos sempre em busca de algo. Às vezes somente de ar. Às vezes, uma civilização possível. Essa necessidade de ultrapassar as pontes dos limiares. Meu médico, que chamo de Dr. Amor, disse que somos movidos nesta caso pela crença da alma. Precisamos dessa entrega e confiar no nosso destino.

Existe no mundo um número assustador de pessoas sem território. Vi a exposição de fotografias de Sebastião Salgado chamada Êxodo. Chorei muito ao ver as pessoas instaladas no Não Lugar. No mundo existem milhões de pessoas forçadas a buscar outros espaços. Às vezes são forçados a ir, não são levados pela alma. A alma grita por acolhimento. Embora aqui no Brasil não tenha havido guerra, temos outras formas de buscas e estamos conjugando sempre os verbos de partida.

Me comovo vendo meus conhecidos no aeroporto, se despedindo. Na despedida deixamos um pouco de nós em cada abraço. E nos damos conta de como todos nos veem. Nesse abraço íntimo percebemos todo o ser. Como estarei no retorno? No movimento, mudamos em cada viagem. Imagine nessa entrega de viver em outro lugar.

Recentemente presenciei a despedida de um jovem conhecido. Estava indo morar em São Paulo. Abracei-o e não contive, meus olhos marejaram.

São os rituais da vida circular que nos fazem pulsar e mudar as estratégias e táticas para conseguir a caminhada frequente.

É o liquidificador dos novos tempos. Tudo se mistura, vira cenário não real. O mundo será agora uma grande paisagem. Como se tudo virasse de um instante para outro uma câmera que filma panoramicamente. Despimos-nos de nossas próprias paisagens.

Os viajantes levam consigo um olhar simulacro e real. Tentam no caminho experiências de afeto, vínculos, mas percebem que na experiência ele se torna estrangeiro para si mesmo. Basta retornar à paisagem antiga (para nossa tribo) para perceber isso. Hoje despir-se de si mesmo se tornou algo mais tranquilo.

Antes, despir de nós mesmos causava vertigem. Essa sensação de tontura e estranhamento se tornou viciante nos novos tempos. Como um estimulante, um entorpecente.

Nesse momento que enfrentamos o efeito colateral desse mundo "conectado" e do "fim" das fronteiras através dos meios de comunicação, sentimos necessidade de vincular-se a esse mundo narrado, ou desejado por todos por meio da linguagem cotidiana. Carlos Drummond pode nos ajudar a sentir através de sua poesia “Sentimento do Mundo”:

sinto-me disperso,

[...] anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.[...]

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação.

Cuidar do olhar, cuidar do sentir ao desfiar a recordação e fazer novos planos. Precisamos entender as imagens para além do local e nos desfazer da experiência mediada, buscando uma introspecção a partir do nosso sentir.

O mundo sempre está além do grande cenário: vem carregado do convívio diário de imensos códigos políticos, éticos, religiosos, educacionais, tecnológicos, experiências simbólicas e ideológicas que são recebidas através de lutas sociais e dos gestuais que compõem o cotidiano.

E ao desenrolar nossos desejos de partir, nosso corpo continua nessa eterna busca que nos possibilita circular.
Que as novas vivências dentro do ir e vir possam trazer uma imensidão de belezas para aproximar todas as vidas pulsantes.

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.