Doenças do passado, doentes de passado
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Doenças do passado, doentes de passado

26 de julho de 2018
Doenças do passado, doentes de passado

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Quando criança nos anos 80, tenho uma triste memória de ver muitas pessoas com paralisia infantil. Crianças e adolescentes que tiveram suas vidas ou retiradas ou estigmatizadas para sempre devido ao flagelo de doenças terríveis que assolavam nosso país há trinta, quarenta anos atrás. Nem é tanto tempo assim, mas lembremos que o “Brasil é um país sem memória”, não é mesmo? Cresci ouvindo isso e querendo mudar esse conceito, não à toa me tornei professora de história.

Mas pense numa profissão que me angustia. Não só pelas precárias condições de trabalho e salário que são a realidade da docência nesse país (isso nunca mudou, quando ensaiou melhorar com os 13 anos de PT já regrediu tudo de novo), como acima de tudo, de ver hoje o Brasil nitidamente regredir em todos os aspectos (moral, socioeconomicamente, na abrangência dos direitos humanos mais básicos, na precarização do acesso a saúde).

É absolutamente deprimente ler números que dão conta que pela primeira vez em 27 anos nossa mortalidade infantil voltou a subir, voltamos ao mapa da fome depois de somente três anos fora dele, e assistimos terrificados o fortalecimentos de todos os discursos fascistas que proliferam livremente pela sociedade, descumprindo inclusive a constituição de 1988, que afirma claramente ser crime fazer apologia ao nazismo ou à Ditadura no Brasil.

Durante os anos 1990 e 2000, o Brasil se tornou referência mundial em imunização de grandes sociedades. Nossa cobertura vacinal, invejável em escala global, não só garantiu uma geração inteira de brasileiros que não precisaram sangrar diante de doenças quase medievais como coqueluche, diarréia e poliomielite, por exemplo, sem falar no sarampo e no tétano que são muito perigosas. Pois é, essa mesma geração, os pais de hoje que tem justamente em média a mesma idade que eu tenho, que foram todos rigorosamente vacinados, agora muitos não querem vacinar seus filhos pois alegam (sem base cientifica nenhuma) que as vacinas são na verdade mais maléficas que benéficas para a saúde das pessoas. Poucas proposições podem ser mais devastadoras do que essa irresponsabilidade para com a sociedade que é não vacinar os próprios filhos, devido à credibilização de fake News que tem suas origens especialmente num discurso fundamentalista religioso neopentecostal de direita.

Assistimos chocados a ofensiva das igrejas evangélicas ( e mesmo algumas católicas) contra a vacina do HPV em meninas de 11 a 13 anos. Uma iniciativa super importante para proteger a saúde das mulheres da próxima geração, coisa que as anteriores sequer tiveram a chance, e que foi boicotado de maneira lamentável, irresponsável. Além do avanço dessa mentalidade neofascista que tem ostensivamente puxado para baixo os historicamente altíssimos índices de vacinação no Brasil, esbarramos também no sucateamento do SUS nesses últimos dois anos do Golpe.

O ostensivo desmonte do SUS tem tido graves consequências também na cobertura vacinal, visto que pela primeira vez, desde que me entendo por gente, constato a imensa dificuldade de encontrar vacinas nos postos de saúde das grandes cidades brasileiras. O resultado é o retorno das já citadas doenças do passado, só está faltando mesmo a Cólera, por que até a Febre Amarela, erradicada desde a década de 40, já voltou. Nesse momento em que o Estado está sob Golpe, nas mãos de um governo que não tem afinidade e empatia nenhuma com seu povo e que, muito ao contrário, como um vampiro gosta de lhe ver sangrar.

Mais grave ainda que o retorno das doenças do passado são aqueles que não tem doença alguma, exceto talvez falta de memória e excesso de cinismo. Os que fazem apologia à sistemas de poder totalitários e autoritários tais como a Ditadura Militar brasileira, denunciada pela anistia internacional com direito a documentos da CIA e tudo por crimes contra a humanidade, buscando relativizar as barbaridades e as atrocidades cometidas pelo regime militar nos anos 70. Foi tortura, foi estupro dentro dos quartéis como pratica quase normalizada, foi adulteração de documentos, sumiço de corpos, torturas físicas e psíquicas de caráter hediondo (para ficar só em dois exemplos, assistam por favor dois belos filmes nacionais sobre o recorte: Batismo de sangue e Zuzu Angel). E ainda tem gente que ousa vir a público dizer que a ditadura não foi ruim. Isso pra mim ou é cinismo, ou seja: pessoas que lucraram muito com um regime que, como não podia ser fiscalizado por uma imprensa livre, se corrompeu numa escala que seria impossível numa sociedade como a de hoje (sim, os militares eram sim mais corruptos, e especialmente mais nepotistas, do que nossos políticos de hoje); ou então é falta de memória, falta de passado. Doentes de passado, eu os chamo. E não precisa ter vivido a época para ter a memória dela, pra isso existe o estudo da história, a partir de fontes sérias, éticas, independentes. Podemos formar uma imagem confiável do passado, afinal imagina se só pudéssemos falar de períodos históricos que vivemos? Toda a história com mais de 70 anos em média não seria estudável. Perderíamos Egito, Grécia, Roma e Revolução Francesa. para ficar em exemplos clássicos, só por que não vivemos esses tempos? Obvio que não, acessamos o passado pelas memórias e registros dos que o viveram.

É urgente que todos nós, professores de licenciaturas em geral, pesquisadores, ativistas de direitos humanos, comecemos a ter uma atitude engajada em nossas ações, no sentido de problematizar tais conteúdos em nossas salas de aula, em nossas palestras e quaisquer lugar de fala que ocupemos na imprensa tradicional ou não, e mesmo fora da imprensa.

Conheço colegas professores de história que acham muito violento com os alunos exibir filmes que mostrem o que foi a tortura. Eles acham que basta dizer que houve tortura na ditadura, não precisa mostrar como ela era. Precisa sim, além de ser um tributo à verdade, à memória dos que lutaram e morreram afirmando essa verdade histórica.

Revelar imagens e discursos tão fortes e violentos de como foi a ditadura é essencial para as pessoas entenderem qual era o nível de brutalidade do regime que hoje eles acalentam como solução para nossa crise de segurança.

Nosso problema de segurança tem outra base: é o racismo, é o ódio ao pobre, a criminalização das drogas. Nosso problema de segurança só vai ser resolvido mesmo quando enfrentarmos os graves problemas sociais da herança da escravidão e da proibição das drogas. Quando nossa sociedade for menos hipócrita e mais racional, mais atenta a sua história, mais apegada às verdadeiras memórias, com professores mais engajados e menos acomodados, poderemos talvez finalmente entender o tamanho do buraco civilizacional em que nos metemos.

Temer é tão burro ou cínico, ou as duas coisas, que no slogan de dois anos de governo afirmou: o Brasil voltou, 20 anos em 2. Depois que as redes sociais não perdoaram o trocadilho muito mal sucedido, constrangido, o governo retirou de circulação o slogan que afirmava que o país voltara ao passado, que voltou a ser um lugar onde se passa fome e se morre de sarampo, doenças do passado trazidas de volta por uma perversa combinação entre um desgoverno golpista que governa contra o interesse do povo e em favor de uma pseudo elite econômica, tão chucra quanto o analfabetismo funcional de qualquer alienado por fundamentalismo religioso, que alimentou os demagogos do Golpe e não sofre os efeitos dele, pois ocupa posições socioeconômicas acima na pirâmide social, ao passado que não tem escrúpulo alguma em entregar as imensas riquezas naturais do país para o capital estrangeiro, apesar de hipocritamente vestir camisa da seleção em atos que se auto intitulam nacionalistas.

Piada, doentes de passado, precisam de cura: aulas de história e sociologia, mergulho na arte, nos filmes, peças e textos literários que falam o que é de verdade a história desse país donde repousam as mais gritantes desigualdades do mundo, o lugar que mais mata LGBTS, mulheres, negros, pobres, drogados, vulneráveis de toda ordem.

O projeto de poder das elites do Brasil hoje é o extermínio puro e simples de todas essas pessoas, todas simbolizadas em uma: Marielle Franco, a mulher negra, pobre e LGTB, ativista de direitos humanos, educadora popular, palestrante, vereadora, alguém com potencial para promover grandes mudanças no Brasil, brutalmente silenciada há cinco meses com apoio do aparelho repressivo do Estado de maneira tão escandalosa quanto vergonhosa. Cinco meses de “intervenção militar” ainda não foram suficientes?

Onde estão os belos resultados da intervenção no Rio que só fez aumentar a violência e em nada melhorou a cidade? 24 anos de historia da ditadura (64-88) não foram suficientes? Quem defende a volta da ditadura ou é mal informado (então corra porque tem muita informação séria disponível) ou é mal caráter mesmo. Qual é o seu caso, meu caro leitor? Está doente de passado? Te dou aula de história grátis, fala comigo... Estou certa que a imensa maioria dos meus leitores são pessoas muitos críticas e conscientes, mas escrevo esse texto pensando num horizonte maior que meu próprio círculo, daí seu caráter tão combativo.

Afinal, as eleições estão chegando, temos um duro combate pela frente: o desafio de não permitir que o bolsonarismo, o fascismo em sua pior vertente, se instale no executivo federal. Para esse lugar, temos que lutar pela volta de um projeto social popular de esquerda ainda mais profundo do que aquele que vivemos na era PT.

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