E o nome dele era João
Natal, RN 29 de mar 2024

E o nome dele era João

16 de junho de 2018
E o nome dele era João

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Remexendo nuns boletins antigos da Primeira Igreja Batista de Natal, encontrei os primeiros registros que eu fiz acerca de João. Acredito que visitar a biografia de João vai nos ajudar a entender melhor o que é o homo evangelicus.

Talvez tenha sido por causa do tipo de criação que recebera. Em casa nunca vira seu pai chegar cedo do trabalho, sentar-se com a mulher e os filhos, contar uma história, ler um livro… A única atividade a que se dedicava, fora do trabalho, era o bar com os amigos. O que será que conversava tanto no bar?

Sua mãe se adaptara àquilo. Nunca reclamava. Provavelmente preferisse mesmo o marido longe. Cômoda e convenientemente ignorava os casos do marido. Ela aconselhava as filhas a não reclamar pois “todo homem é a mesma coisa, não tem jeito, a vida é assim…”

As duas irmãs saíram de casa para morar com os namorados. Uma já tinha uma filhinha e a outra estava grávida. A mais velha passava a maior parte do tempo na casa da mãe. Era desculpa. Na verdade não tinha o que comer em casa. A novinha morava no fundo da casa dos pais do companheiro.

Foi nessa época que João começou a se drogar. Desde pequeno bebia mas a droga fora algo diferente. Sua dependência levou-o a uma vida de semi-marginalidade. Os biscates que arranjava não eram suficientes para sustentar seus vícios.

Tudo que João fez na vida foi reproduzir o modelo que teve em casa. Seu interesse pelos estudos, sua relação com as mulheres, seu gosto musical, o tempo “investido” numa mesa de bar, seu orgulho de nunca ter lido um livro, sua fé genérica e sem compromisso em tudo que é religião… ele aprendeu em casa.

O pai de João

Conheci o pai de João um dia quando precisei de um pintor. Ele foi lá em casa. Fumava desbragadamente. Seu trabalho não me inspirou confiança e além do mais era caro. Outro dia eu o vi dirigindo um carro. Um Fiat velho, caindo aos pedaços, soltando muita fumaça, com uma porta amarrada com arame. Saía umas varas pela janela que ele usava para amarrar os pincéis. Claro que ele dirigia sem usar cinto de segurança.

Reconheci que era o pai de João pelo cigarro que fumava avidamente em meio ao suor que escorria da testa e dirigia sem qualquer respeito pelos demais motoristas. Cruzou a rua que era preferencial, sem parar para o carro que vinha, que infelizmente era o meu. Impressionou-me que ele, depois de dar uma fechada num carro adiante, continuou como se nada tivesse ocorrido e fosse a coisa mais normal do mundo.

Grande parte no que João se tornou se deve ao meio em que viveu. O pai tem, talvez, um papel marcante na formação do caráter de João, mas é, de qualquer forma, apenas um no coro de homens ridículos e mulheres acomodadas, que fabricam este exército de joões que está por aí.

E João virou crente…

Como a vida de João estivesse cada vez mais uma bagunça, ele foi ficando muito nervoso. Brigava à toa, só dormia chumbado e sua saúde era péssima.

Assim como seu pai, João detestava crente. Não perdia a oportunidade de atrapalhar um culto ou fazer uma gozação. Até o dia em que Durval, um amigo de farra, virou crente.

João estranhara o desaparecimento de Durval. O povo dizia que ele tinha viajado. Para onde? As informações eram desencontradas. Um belo dia ele reaparece. Crente! Tinha passado um tempo num centro de recuperação, agora frequentava uma igreja e queria, porque queria, que o João fosse à igreja dele.

Claro que João rejeitou os convites. Um dia, porém, depois de uma briga feia em casa, saiu desnorteado e encontrou ocasionalmente com Durval. Recebeu a maior força do amigo e depois de algum tempo acabou fazendo adesão a Jesus.

Durval levou-o ao Centro de Recuperação onde João ficou uns tempos, mais para ficar livre das piadas do pai do que das drogas, pois ele não era propriamente um viciado. Esse tempo no Centro de Recuperação deu a João uma certa base espiritual. Voltou e, depois de frequentar por um tempo uma igreja perto de sua casa, acabou se batizando.

Ninguém, na casa de João, quis saber de sua nova vida. Era como se tivessem perdido “um dos nossos”. Gostavam da nova fase do João: sem agressões e mais responsabilidade, mas não quiseram saber da mensagem de João. Podemos dizer que “Deus mandou um mensageiro, um homem chamado João, para falar a respeito da luz”, mas a própria família de João não recebeu a mensagem.

O jacaré

A história de João, como de todo mundo, é longa. Ele passou por um processo radical de transformação inicial, ajustou-se a uma vida “normal”, isto é, conseguiu emprego com um amigo da Igreja, casou, teve um filho, mas também teve problemas, retrocessos e decepções. Noutra oportunidade conto com mais detalhes.

A última vez que estive com João, vários anos depois de sua conversão, fiquei muito impressionado. Fui com ele a uma reunião numa igreja e vimos ali manifestações explícitas de briga pelo poder e desrespeito pelos mais fracos que no caso eram os membros daquela igreja de periferia. Apesar da igreja ter resistido bravamente à tentativa de violação de seus direitos, saímos tristes e chocados com a atitude dos líderes que lá estiveram.

No carro, João contou-me uma história hilariante. No seu retorno à Igreja ele se aplicou intensamente à compreensão de Jesus e de sua mensagem. Tinha percebido que Jesus, isto é, a vida e o ensino de Jesus diretamente relatados nos evangelhos eram, em suas palavras, “as mais seguras garantias de firmeza e fidelidade ao evangelho”.

Nos últimos meses tinha se dedicado à meditação no sermão da montanha, especialmente nas bem-aventuranças. E foi assim que João foi absorvendo a visão de Cristo sobre os valores superiores da pobreza, da humildade, da mansidão, da fome, das lágrimas, da perseguição…

– Isso mudou radicalmente minha vida – completou João: O Sr. sabia que fui líder de gangue na minha adolescência? Pois é, lá a regra era estar por cima. Não admitia que ninguém colocasse em xeque minha autoridade. Tinha de mostrar que era duro e sem piedade. Tudo se resolvia na briga e eu era sempre o melhor. Por isso eu era o chefe.

– Isso não tem nada a ver com a mensagem de Jesus, não é mesmo?

– Exatamente. É isso. Eu tenho até me estranhado. Como a mensagem de Jesus mudou minha cabeça! Outro dia, numa excursão de minha Igreja, visitamos um zoológico. Estava passeando perto do lago dos jacarés. Um pássaro desavisado ficou catando minhoca na beira do lago, veio o jacaré e vapt! Engoliu o pássaro. Levei um tremendo susto com a cena e falei sem pensar: “Coitado do jacaré!!”

Eu caí na risada. Não pude me conter.

– É isso aí João, você descobriu o segredo do evangelho: “coitado do jacaré!” Que maravilha! Se ser jacaré fosse melhor do que ser pássaro Jesus teria encarnado sumo-sacerdote judeu, um grande em Israel ou imperador romano, mas optou nascer numa estrebaria e viver em Nazaré! Coitados de todos os jacarés!

– Pois é, mas hoje, nessa igreja que a gente foi, eu não vi o evangelho. Aposto que aqueles líderes que ali estavam tentando impor sua vontade àquela igreja não iam nem se condoer pelo pássaro. Acho até que eles achariam bem feito para ele. Pior, pastor, acho que eles são os próprios jacarés.

– Pois então, coitado deles. Não é mesmo?

– É verdade.

Eu, que tinha saído irritado da reunião, pensando no que podia fazer em relação àqueles acontecimentos, fiquei calmo e feliz. Que lição eu tinha aprendido! Quantas mudanças ainda tinham de haver em meu coração: aprender a lutar, mesmo que sozinho, contra a injustiça e o pecado onde quer que eles se manifestassem, mas sem jamais revidar a injustiça que fosse feita contra mim. Aprender a amar e admirar de todo coração as coisas pequenas deste mundo. Para mim, agora tinha ficado claro porque a mensagem da cruz é loucura para os gregos e ofensa para os judeus.

Definitivamente, este João é uma grande figura! Novamente me lembrei do sexto versículo do quarto evangelho: “Deus mandou um mensageiro, um homem chamado João”.

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