Então, é Natal!
Natal, RN 25 de abr 2024

Então, é Natal!

29 de dezembro de 2019
Então, é Natal!

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Essa história do mundo da bola já tem um tempão. Isso foi nos idos de final dos anos 1990, eu ainda trabalhava como editor de esportes do Diário de Natal.

Quase todos os finais de ano, época natalina, como ainda hoje é assim, surgem os "filantropos de ocasião". Eles querem ajudar os mais carentes, sentem piedade dos que têm fome, dos mais necessitados. Tem gente boa sim, mas a grande maioria, sabemos, é picaretagem, tentando vender imagem de bom moço para a sociedade, ainda mais quando você conta com um jornal de grande circulação para mostrar as "ações piedosas".

Tinha um ex-atleta, claro, não posso citar seu nome, atuou em Ferroviário, Riachuelo e outros clubes que, nessa época do ano, iniciava sua jornada em busca de doações. Se bem que eu tenho a impressão de que ele agia dessa forma o ano todo. Não trabalhava pra ninguém, vivia de pedir. Quando alguém, sensibilizado, arrumava um trabalho, mesmo os mais "moles", como por exemplo ficar de vigia na Câmara Municipal de Natal, em pouco tempo inventava uma doença e voltava o pede-pede. Claro, nessa época, inocente, eu de nada sabia das safadezas dele, pois o cumprimentava, havia jogado com meu irmão e o que lembrava dele era de muitas arengas dentro de campo, ele atuava de volante e eu, meia. O rapaz filantropo a que me refiro, também não sabia. Ele queria ajudar o maior número de pessoas, promover eventos, arrecadar alimentos, distribuir e ver seu nome na mídia.

O sem vergonha nos pegou de jeito certo dia . O tal sujeito, menino, nos contou uma história bonita de desemprego, doença, contas para pagar, necessidade da esposa quase inválida, dos filhos e que estava chegando o natal e não tinha nada em casa, rapaz, uma ladainha tão grande que eu, liso, salário de jornalista, ainda tirei 20 contos do bolso para dar para ele naquele dia. O filantropo, comigo ouvindo a choradeira,  mais rico, prometeu levar uma cesta de natal boa na casa dele. Pediu o endereço do dito cujo, mas eu notei que ele colocava dificuldade, dizia que era casa de pobre, que dissesse o lugar que iria pegar a cesta, mas o meu colega insistia que queria deixar na mão de sua esposa. Meio a contragosto  nos passou o nome da rua, número e o bairro, estranhei, mas achei que era porque ele tinha vergonha da sua pobreza.

Devo dizer que essa doação levada em casa seria um caso especial, pois normalmente eram feitos eventos - jogos  ou jantares - e os ex-atletas presentes, mais carentes, recebiam as cestas quase sempre sem a necessidade de sorteio e, sendo assim,  o nosso bom samaritano tinha seu nome publicado nos jornais. Chegou a data. Entrei no carro do filantropo (um ex-amigo, também não vou citar o nome, claro) e tocamos para a casa do suposto pobre ex-atleta, que morava na Zona Norte. Não tinha GPS na época, mas não foi difícil encontrar, pois o "esconderijo" do decente ficava perto de um campo de futebol. Antes, entramos no Nordestão da ZN e o meu ex-amigo comprou uma cesta das mais atraentes e sortidas, me lembro que custava mais de quinhentos contos. Era dinheiro. Me admirei pois esse filantropo não era tão mão aberta assim. Eu, claro, sem poder aquisitivo para tal, acompanhava somente.

Cesta de natal comprada. Vamos ao endereço do rapaz fazer a felicidade de quem não tinha quase nada. Numa esquina ficava sua morada, defronte, realmente, para o campo de futebol do conjunto. Paramos, conferimos nome da rua, número e, já na calçada uma senhora bem vestida, ainda conservada, sentada batia papo com amigas, vizinhas, creio. Perguntamos se era realmente a residência do nosso "pobrezinho e sofrido ex-atleta". Ela, de olho na cestona que o rapaz trazia na mão, confirmou com um sorriso de orelha a orelha. E ele, onde estava? Quisemos saber. "Tá jogando", respondeu a esposa, ao mesmo tempo que mandava o filho, acho que era, chamar. Dali mesmo o menino gritou: "paiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Tem dois homi aqui!" O ex-atleta estava no meio da disputa de uma pelada regada a muita bebida, nem dava para identificá-lo no meio tantos.

A senhora, simpática, nos fez entrar. Casa grande por fora, jardim bem cuidado, pelo jeito tinha passado por reforma e até varanda havia. Entramos. A surpresa maior. Pensei que o filantropo que me acompanhava e comprara a cesta ia ter um troço de pasmo. Seus olhos se aboticaram diante do que via.  Uma sala com móveis novos, impecáveis, televisão de não sei quantas polegadas já naquela época, um sofá super confortável, amplo, sala decorada com quadros (não caros, mas bonitos), um centro com objetos de decoração, gente, parecia tudo, menos a casa de um infeliz que vivia chorando miséria. Esticamos a vista lá pra dentro, eu e o filantropo, caramba! Mais surpresas. A geladeira era duplex, já tinha gelágua, fogão enorme, acho que automático, microondas, liquidificadores, batedeira, tudo do bom e do melhor numa cozinha de móveis embutidos. Pensei, juro, que ia chegar um cara diferente, que estávamos na porta errada, pois não acreditávamos no que víamos.

Tive vontade de pedir a mulher para conhecer a casa toda, comprovar o luxo que, certamente, veria nos dois banheiros, nos três quartos do casal e dos filhos, eram três, dava para ver, mas aí, o nosso ex-atleta já tinha chegado. Me voltei curioso, juro, esperando me deparar com outras pessoa, mas era ele mesmo, sonso, envergonhado, na verdade, não sabia que viríamos e creio que não gostou nada da mulher ter nos feito entrar. Nos cumprimentou de olhos baixos, agradeceu, repetiu a ladainha de que tava precisando, agora, certamente, sabia que nunca mais acreditaríamos nas suas mentiras e foi assim. Eu e o filantropo saímos mais rápidos do que imediatamente, e só lembro que o caminho todinho, e durante os outros dias que se seguiram, o meu ex-amigo filantropo sempre que falava no ex-atleta seu nome vinha acompanhado de um sem número de palavrões.

O sem vergonha mentiroso, a partir desse dia, quando passava por mim, ainda cumprimentava com a mesma cara de pedinte, porém,  eu nunca mais lhe dei oportunidade de ir além do "oi".

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.