Entendendo a derrota I: a antipolítica
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Entendendo a derrota I: a antipolítica

4 de novembro de 2018
Entendendo a derrota I: a antipolítica

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É preciso que meditemos sobre os motivos que levaram a que, após quatro vitórias eleitorais seguidas, o Partido dos Trabalhadores e as esquerdas tenham sido derrotadas no processo eleitoral que se encerrou no último domingo. É preciso que nos indaguemos também sobre as motivações que levaram a que grande parte dos partidos políticos de centro e de centro direita tenham tido um resultado eleitoral tão adverso, uma rejeição tão grande do eleitorado, a ponto da maioria dos eleitores ter optado por votar num candidato de extrema-direita, um integrante histórico do baixo clero no Congresso Nacional, que conseguiu destaque sempre por suas opiniões radicais, por suas ideias politicamente incorretas, por seu discurso eivado de preconceitos de toda ordem, quase sempre atravessado por uma persistente agressividade e violência simbólica. Dedicarei esse e meus próximos textos a dissecar as complexas motivações e o processo histórico que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro para ocupar a presidência da República, uma opção que deixou perplexa grande parte da imprensa internacional e que representa uma séria ameaça à normalidade democrática no país e às tímidas conquistas que as camadas populares brasileiras vivenciaram nos governos do PT.

O primeiro aspecto que salta aos olhos ao analisarmos a decisão da maioria dos eleitores que compareceram às urnas para votar é que, nessas eleições, não se votou majoritariamente a favor de uma dada proposta política, de um dado partido, de um dado plano de governo ou de uma proposta para o país. Nessas eleições, grande parte do eleitorado teve como motivação para seu voto o rechaço ao Partido dos Trabalhadores, a recusa daquele partido ao qual a mídia, de forma parcial e premeditada, atribuiu todos os males e desvios do sistema político brasileiro. Esse voto de protesto, de recusa e de rechaço se estendeu na direção dos grandes partidos de centro e de centro direita que compunham o sistema político do país nos últimos anos, seja na sustentação parlamentar aos governos petistas, seja na oposição. A maioria dos votantes viram na candidatura de um pretenso outsider, de um pretenso postulante antissistêmico, de um pretenso paladino na luta contra toda a bandalheira que caracterizaria o sistema político, a única opção para depositarem suas esperanças de mudança, de que “a farra” venha acabar. O sucesso eleitoral de Bolsonaro se deu, entre outras coisas, por ele conseguir se mostrar como alguém que encarnaria a antipolítica, ele seria o justiceiro, o vingador contra todos os males trazidos pela política e pelos políticos. Na vitória não se via seus partidários gritarem seu nome ou elogiar suas ideias, o que se ouvia eram gritos de ódio e recusa do adversário e de seu partido.

Numa eleição em que, paradoxalmente, se buscava um julgamento e a condenação da política e dos políticos, o PT teria muitas dificuldades de vencer. Antes de tudo, porque nenhum partido representa mais organicamente a atividade política no país do que o PT. O PT sempre fugiu do discurso da antipolítica, sempre valorizou a atividade política, basta ver os inúmeros discursos de sua máxima liderança, o ex-presidente Lula, colocando a política como a atividade essencial para realizar qualquer mudança no país e pedagogicamente aconselhando os jovens e todos aqueles que não gostam dos atuais políticos, que não neguem a política, mas se tornem políticos, dando a essa atividade uma nova cara. A própria escolha de Fernando Haddad e Manuela D´Ávila para formarem a chapa da aliança encabeçada pelo PT, no caso da inabilitação de Lula, a aproximação com novas lideranças de esquerda como Guilherme Boulos, do PSOL, sinaliza para essa reafirmação da atividade política e da necessidade de sua renovação. Quando o principal partido de oposição, o PSDB, indispensável para o funcionamento normal e democrático da vida política, se deixou seduzir pelo discurso da antipolítica, justamente por identificar em seu principal adversário a encarnação da atividade política, dando passagem para um outsider, como João Dória, que se elegeu prefeito de São Paulo e, agora, governador do estado, negando ser um político, se dizendo um gestor, esse discurso da antipolítica se fortaleceu e avançou na desestruturação do sistema político brasileiro.

Insuflado cotidianamente pelos meios de comunicação hegemônicos no país, esse discurso de desvalorização da atividade política e de suspeição generalizada da classe política, visa, entre outras coisas, fragilizar as demais instituições, notadamente as instituições públicas, abrindo espaço para um poder ainda maior das instituições privadas, notadamente das empresas e, entre elas, das empresas de comunicação. Podemos dizer que, no Brasil, assistimos nos últimos anos o crescimento continuado do poder do chamado quarto poder, a medida que esse trabalhava na deslegitimação e desqualificação dos três poderes fundamentais em uma democracia e em uma república: o legislativo, o executivo e o judiciário. Longe de mim afirmar ou desconhecer que esses poderes deram margem e motivo para essa perda de prestígio junto a população. No entanto, as grandes empresas de mídia não estão livres dos mesmos pecados que costumam apontar nos demais poderes: corrupção, tráfico de influência, sonegação fiscal, caixa dois, branqueamento de capitais, evasão de divisas, monopólio, gestão temerária, assalto aos cofres públicos, negociatas e acordos com o sistema político do país. Mas como temos uma mídia monopolizada e concentrada nas mãos de um pequeno grupo de famílias, seus pecados não aparecem no noticiário ou só muito esporadicamente quando, em dados momentos, a competição se acirra e alguns desmandos vêm à tona, até quando um acordo de cavalheiros faz a sujeira ser atirada para debaixo do tapete e o silêncio consertado e acertado se faça.

Como parte da prevalência, nos meios de comunicação hegemônicos e das elites econômicas do país, do discurso neoliberal, temos a desqualificação da coisa pública, a suspeita em relação ao Estado, a ênfase na superioridade da gestão privada, do administrador profissional. Como corolário, essa ideologia vem reforçar a histórica inapetência de nossas elites econômicas para pensar na coisa pública, para pensar no país, nos interesses nacionais, em afiançar algum projeto de nação, alguma proposta que vá além do benefício imediato e privado de seus interesses pessoais e empresariais. O espetáculo que assistimos de grandes empresas do país financiando ilegalmente a fábrica de mentiras e ataques caluniosos de um candidato, sem se preocupar sequer em se inteirarem de suas propostas para a gestão da economia nacional, mostra bem que se tratava de derrotar aquele partido que representa não apenas os interesses dos trabalhadores, pelo menos tem essa palavra em seu nome, mas também aquele partido que teima em valorizar a atuação do Estado, que defende a coisa pública e o patrimônio público, que afirma que o mundo do trabalho e da empresa, que a economia é também lugar de política. Se a economia política é uma criação de economistas identificados com a burguesia, se a ciência económica é uma invenção do capitalismo, em nosso país economia política é vista como coisa de comunista e nossos empresários sonham com o fim da política no mundo econômico. Essa visão autoritária, que tem suas raízes mais profundas na escravidão, onde o trabalhador não era, formalmente, sujeito de direito e nem sujeito político, é a utopia não confessada de uma grande parcela do empresariado nacional que se identificou com um candidato que promete levar as relações de trabalho para antes da economia política, com a desmontagem do movimento sindical, dos movimentos sociais, com a repressão a qualquer ativismo político.

O MDB, que durante muito tempo foi o maior partido brasileiro, um partido que ocupava o centro político e viabilizava todos os governos eleitos no país, foi devastado por ter capitaneado o golpe de 2016, um dos grandes capítulos de desmoralização da atividade política, como foram anteriormente os chamados mensalão e petrolão. A Operação Lava Jato, e sua associação com a mídia, teve um papel central na desmoralização do sistema político brasileiro, do qual o PMDB, foi desde a redemocratização, o principal fiador. A impopularidade que o desastrado governo Temer trouxe para o PMDB, que até tentou mudar de sigla para ver se escapava do naufrágio, só fez reforçar o vazio político que se escancarou de vez com a prisão da única grande liderança popular do país, o ex-presidente Lula. Como aconteceu na Itália, quando a chamada Operação Mãos Limpas devastou o sistema político do país e desmoralizou os principais partidos políticos, levando a acensão de Sílvio Berluscone, um empresário das comunicações, medíocre intelectualmente, envolvido com muitas práticas ilícitas, um fanfarrão de opiniões e comportamentos grotescos, o vazio político nunca fica sem ser preenchido e, no caso do Brasil, o foi por uma figura que, se voltássemos quatro anos no tempo, nos pareceria bastante improvável que viesse a ter esse sucesso.
A acensão de um político inexpressivo como Bolsonaro se deu com sua capacidade de canalizar para si toda repulsa que foi criada, no país, contra a atividade política, que passou a ser associada, pelo discurso de extrema-direita que embalou a fabricação de sua persona pública, do avatar de mito, que conseguiu ganhar uma eleição praticamente sem fazer campanha, sem aparecer publicamente, sem apresentar um programa, sem debater ideias, sem expor as suas inúmeras contradições e fragilidades, à coisa de comunista, de vermelho, de petralha, de baderneiro, de bandido. O perigo desse discurso da antipolítica é que ele pode servir de base, uma vez Bolsonaro instalado no poder, para a perseguição de seus opositores políticos, para a repressão as atividades políticas inerentes a uma sociedade democrática e republicana. Quando o fazer política passa a ser criminalizado, como foi insistentemente nesses últimos anos, toda atividade pública, toda atividade de militância política pode ser criminalizada, como se pretende ao tipificar como atividade terrorista as atividades políticas dos movimentos sociais. Qualquer forma de atividade política, inclusive a opinião de cunho político, pode ser motivo de censura e de perseguição, quando se convence a sociedade de que fazer ou falar em política é um delito. É o que estamos vendo acontecer em muitas instituições de ensino onde pais e alunos se acham no direito de cercear a liberdade de cátedra dos professores, garantida pela Constituição, porque sala de aula não seria lugar do exercício da política. A proposta de uma escola sem partido, a proposta de uma deputada bolsonarista de Santa Catarina para que os alunos denunciem os professores que emitem em sala de aula suas opiniões políticas, faz parte desse clima generalizado de suspeição da atividade política.

Devemos lembrar que não foi apenas Jair Bolsonaro que surfou nessa onda da antipolítica. Os três estados mais populosos do país, estados que têm enorme importância econômica e política, elegeram, como governadores, figuras bastante desconhecidas, pretensamente infensas aos males do nosso sistema político ou, no caso de São Paulo, o gestor João Dória, que usou o mesmo discurso da antipolítica para se eleger. Alcançando cifras astronômicas de votos, Romeu Zema e Wilson Witzel, se elegeram governadores de Minas Gerais e Rio de Janeiro. O primeiro, um empresário, pertencente a um partido que desde o nome já se pretende Novo, ou seja, desligado da prática da chamada velha política, uma das expressões mais usadas nessa campanha, que se traduz, na verdade, por um rechaço da política, entendida como atividade regular e profissional. O pressuposto falso aqui é que um empresário não é político mesmo exercendo a atividade política e vai trazer para a atividade de governo suas práticas, pretensamente superiores e exitosas de gestão, que utilizaria em sua empresa. Governar o Estado como uma empresa, enunciado típico da ideologia neoliberal, conquista muitos corações e mentes, mesmo sendo uma antinomia e uma impossibilidade, já que, por definição, o Estado não pode ser gerido tendo o lucro e a capitalização como objetivo. O Estado tem a função de extrair parte da riqueza gerada no setor privado e devolvê-la à população, notadamente, a mais carente, em forma de serviços públicos, funcionando como agente da distribuição de riqueza, o oposto do que faz uma empresa. Os serviços ofertados pelo Estado não visa o lucro, mas o bem estar e o atendimento da população. Ir para o Estado para eliminar a sua presença na sociedade é a grande contradição de governos neoliberais, eles praticam uma espécie de suicídio, de araquiri do Estado. Já o governador eleito do Rio de Janeiro, tido como um juiz durão aposentado, uma espécie de Sérgio Moro carioca, ganhou surfando a onda da falta de segurança pública e a ideia de que vai com medidas de força resolver o problema da violência, o que comentarei em outro artigo.

Santa Catarina elegeu, com mais de 70% dos votos, um ex-comandante do Corpo de Bombeiros, sem nenhuma experiência política anterior. Ele é um exemplo de um outro fenômeno gerado pelo discurso da antipolítica: a derrota de muitas figuras carimbadas da vida política brasileira, nessas eleições. No Rio Grande do Norte foi uma verdadeira razia o que sofreu as famílias que tradicionalmente dominavam a vida política do estado. Pela primeira vez, em muitas décadas, Alves, Maias e Rosados ficaram fora da lista de representantes do estado no Congresso Nacional. Nesse estado é interessante notar que a candidata do PT, Fátima Bezerra, terminou por se beneficiar da desmoralização sofrida por essas famílias, ao ver seus nomes envolvidos em casos de corrupção. O discurso da antipolítica também produziu nesse estado um fenômeno que foi comum, em muitos outros, nessas eleições: assim como em Santa Catarina, um militar, sem nenhuma experiência anterior de militância política, galgou o cargo de senador e como o mais votado do estado: seu único mérito ter sido um policial durão na aplicação da chamada lei seca. Foram cerca de 147 militares que conseguiram sucesso em suas candidaturas ao legislativo federal e muitos outros nos legislativos estaduais, aumentando exponencialmente a chamada bancada da bala. Vistos como não políticos, como mais infensos a corrupção (quando sabemos que a corrupção é epidêmica em nossas polícias civis e militares), como durões contra o crime e os maus feitos, como implacáveis com os bandidos, eles surfaram a onda da antipolítica, atividade da qual tendem a ter uma má imagem, à medida que também tendem a identifica-la com a desonestidade e com práticas e ideias de esquerda, de comunistas, de baderneiros e vagabundos, de gente que não tem o que fazer. Além dos militares, os membros de comunidades religiosas, a chamada bancada da Bíblia, também surfou na onda moralista da antipolítica. Usando suas igrejas e denominações religiosas como verdadeiros currais eleitorais, usando os púlpitos para desabridamente fazerem campanha para o candidato da extrema-direita, candidato cujo discurso se contrapõe de modo veemente à doutrina cristã, a bancada religiosa cresceu à medida que se apresentou como pessoas alheias ao mundo da política, como pessoas ligadas ao mundo do religioso, do sagrado, do Evangelho, e que vão para a vida pública como missionários em defesa dos valores e princípios pretensamente cristãos. Fazem política todo tempo negando que a estão fazendo. O mesmo ocorre com jornalistas, notadamente aqueles ligados a programas que abordam o mundo cão da criminalidade, radialistas de programas populares e que prestam serviços de utilidade pública. Sem falarmos dos personagens caricaturescos, dos verdadeiros cacarecos, que expressam em si mesmos uma crise da vida política, que simbolizam o desprezo e o escárnio com que setores da população veem essa atividade. Nessa eleição o fenômeno Tiririca se potencializou, se elegeu para o Congresso Nacional muitos outros palhaços e muitas outras palhaçadas. A bancada federal eleita pelo estado de São Paulo deveria merecer um estudo a parte, já que é um estado em que a população tende a se achar mais politizada e até mais inteligente e culta do que os demais estados do país. Podemos medir então o desapreço pela política, olhando os parlamentares paulistas, um conjunto teratológico de seres bizarros, uma série de oportunistas surfando a onda de negação da política e da classe política. Se apresentando como renovação, são o que de mais atrasado e retrógrado poderia se ter.

Por fim, para que tenhamos a ideia da importância que a antipolítica, que a rejeição a atividade política teve nessas eleições, vejamos os números assustadores de eleitores que se abstiveram de votar, que votaram nulo e em branco para o cargo de presidente da República. Se em 2014, mais de 38 milhões de eleitores deixaram de escolher um candidato a presidente, esse ano mais de 42 milhões de pessoas não quiseram, mesmo diante de um segundo turno tão polarizado, quando a candidatura do PT levantou a bandeira de se votar em defesa da democracia, se posicionarem, numa explícita alienação eleitoral e politica. Mesmo em um país em que o voto é obrigatório, cerca de um terço do eleitorado preferiu não votar ou não escolher ninguém. Desde o ano passado, eu previra que uma vitória de Jair Bolsonaro, ou de um candidato sem um partido de expressão, sem enraizamento concreto na sociedade, sem organicidade, a vitória de um outsider, só seria possível se cerca de 30% do eleitorado se omitisse. Como o PT e seus candidatos partem com cerca de um terço do eleitorado e como a direita tem também cerca de 30% do eleitorado é, justamente, os outros quarenta porcento que decidem a eleição, dependendo que opção faz. Jair Bolsonaro ganhou as eleições com o voto de cerca de 37% do eleitorado e Fernando Haddad conquistou exatamente 31% dos votos, ficando dentro do piso de votos históricos do PT, partido que, segundo as pesquisas eleitorais, é o preferido de 29% da população. Esses números significam que Bolsonaro levou os votos dos 30% que geralmente votam em candidatos conservadores e conseguiu daqueles 40% decisivos, cerca de sete porcento dos votos, o que foi suficiente para lhe dar a vitória pois 32% dos eleitores resolveram não votar em ninguém. A omissão desse enorme contingente de eleitores, envenenados pelo discurso da antipolítica e pelo discurso de que no segundo turno teríamos dois candidatos extremistas que se equivaliam, feito pela grande mídia, foi um elemento decisivo para entendermos a derrota que as esquerdas e os democratas e liberais sofreram no último dia 28. E, o pior, temo que ele continue servindo de base para a adoção de uma política de repressão, censura e expurgo político por parte do governo eleito como representante e encarnação desse desapreço pela atividade política.

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