Érica Canuto: “A casa é o lugar de mais risco para a mulher”
Natal, RN 20 de abr 2024

Érica Canuto: “A casa é o lugar de mais risco para a mulher”

19 de abril de 2020
26min
Érica Canuto: “A casa é o lugar de mais risco para a mulher”

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O isolamento social como medida preventiva tem sido apontado por especialistas da saúde no mundo inteiro como a estratégia mais responsável para diminuir a propagação da doença respiratória causada pelo novo coronavírus. Mas, para mulheres em situação de violência doméstica, conviver mais tempo do que o comum com o agressor também pode custar a vida.

Dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança colocam o Rio Grande do Norte entre os Estados com maior número de feminicídio neste período de distanciamento social. Documento aponta quatro mortes neste ano até o mês de março. Mas os números tendem ao crescimento. Na mesma data de publicação, em 16 de abril, mais um caso, uma jovem de 18 anos, grávida de 7 meses.

Houve, também, um aumento do número de registros de violência doméstica. Segundo a promotora de justiça, Erica Canuto, do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN), em fevereiro deste ano foram 354 registros de ocorrência de novos crimes no Estado inteiro e, em março, 385, um aumento de 8,8%.  Alguns municípios computaram um aumento bem maior que esta média. Em São Gonçalo foi de 177,8%; Macaíba, 175%; Arês, 100%; e Ceará-Mirim, 85,7%.

A quantidade de medidas protetivas também sofreu crescimento entre a primeira e segunda quinzena de março, quando o estado decretou as primeiras medidas de distanciamento social. Os pedidos de proteção cresceram 18,5%.

A promotora Erica Canuto conversou com a equipe da Agência Saiba Mais sobre o crescimento desses números. Ela está certa de que o isolamento domiciliar não é a causa dessa violência. Mas alerta que, nesse momento, as mulheres que já sofrem com relacionamentos abusivos correm mais perigo porque não estão conseguindo escapar do agressor. E o lugar mais perigoso é dentro de casa.

Um documento da ONU Mulheres no Brasil alertou, no dia 20 de março, que o enfrentamento à Covid-19 tinha outro peso para mulheres e meninas, que passava desde a sobrecarga das atividades domésticas até o ato de agressão – moral, física ou sexual – dentro de casa.

Em 2019, sob o governo Bolsonaro, o Brasil, um dos países mais violentos para mulheres, registrou um crescimento de 7,3% dos casos de feminicídio se comparado ao ano de 2018. O Rio Grande do Norte, no entanto, único Estado da Federação a ser governado por uma mulher, houve redução desses casos em 30%. Em um mês de isolamento social, os números voltaram a crescer em todo o país, e também no RN. Quais são esses números e na sua avaliação a que se deve esse crescimento?

Efetivamente, comparando os anos de 2018 com 2019, o Rio Grande do Norte registrou uma queda do número de feminicídios de 30%, enquanto no país aumentou.  Em relação agora, ao período de distanciamento social, nós tivemos um aumento do número de registros de violência. Em fevereiro deste ano, foram 354 registros de ocorrência de novos crimes no Estado inteiro e, em março, foram 385, quer dizer um aumento de 8,8%. Natal registrou um aumento maior de 13,3% e a região metropolitana Metropolitana é de 22,41% de aumento.

Houve também aumento de novos registros ou pedido de medidas protetivas. Mulheres pediram mais proteção. Se compararmos a primeira quinzena com a segunda quinzena de março deste ano, quando já se tinha as medidas de distanciamento, houve um aumento de 18,5% de novos pedidos de medidas protetivas em Natal.

Como esse cenário de pandemia agrava a violência contra a mulher? A situação econômica do País, de crise, influencia a expressividade dos dados?

Esse cenário de pandemia agrava a violência contra mulher. É esse cenário de distanciamento social, em que as mulheres ficam mais tempo em casa.

E a casa é o lugar de mais risco para mulher. Sete em cada dez mulheres morrem em casa.

Então as mulheres são vitimadas em casa. Enquanto os homens estão morrendo na rua, no enfrentamento da violência urbana, as mulheres estão morrendo em casa, em razão de uma cultura machista. Quanto mais tempo as pessoas estão em casa, isoladas, e com outros fatores de risco - eu quero lembrar que o distanciamento social ele não causa violência, mas ele é um fator de risco - mais se agrava, ou pode propiciar, essa violência. O distanciamento é um fator de risco, mais há outros como o uso de álcool, o uso de drogas, o uso de armas. Tudo isso agrava, são situações que causam risco às mulheres. Outro agravamento é, sim, a crise econômica. A gente não pode deixar de dizer que não é um estresse, não é o desemprego que causam violência, mas os fatores estressores, como a crise econômica, como o uso de álcool, o uso abusivo de drogas e o distanciamento são fatores de risco que, associados, podem levar a um aumento dessa violência.

O quanto a vulnerabilidade social pesa no contexto de violência contra a mulher?

É importante falar sobre a vulnerabilidade como fator de risco.  Há uma autora americana, chamada Angela Davis, que fala sobre esses recortes. Ela disse que não existe a violência sem o racismo, a violência contra mulher, a violência de gênero, o gênero sem racismo e sem diferenças sociais. Então há um recorte, o que a gente chama de interseccionalidade. Não há como dizer ou não há como comparar mulheres e contextos diferentes.

Então a mulher pobre, a mulher negra, tem mais vulnerabilidade do que uma mulher branca, de classe média alta, sem dúvida.

O machismo atinge a todas, porque todos nós somos afligidos por essa cultura machista. Mas há outros marcadores sociais que vulneram essas mulheres: a condição social, essa diferença social, a vulnerabilidade social, e também a condição de mulher negra, parda, vulnera muito mais as mulheres, faz com que ela fique muito mais vulnerável a todo tipo de violência. Tanto é, que os feminicídios cresceram muito mais em mulheres negras do que em mulheres brancas.

Existe um perfil específico das mulheres vítimas de violência e, também, do agressor? 

A violência universaliza, ela iguala todo mundo e essa violência de gênero contra a mulher é fruto de uma cultura machista, uma cultura que está em todos os lares brasileiros.

Nós somos o 5º país no mundo que mais mata mulheres, mas a gente precisa dizer que há mulheres que morrem mais.

Mulheres em faixa etária de 20 até 40 anos, que estão em reprodução e produção, mulheres negras, mulheres pobres, morrem mais pelo machismo. Outros marcadores sociais agravam essa situação e fazem com que essas mulheres se tornem mais alvo dessa violência. Isso a gente também tem que analisar por um outro ângulo, porque muitas vezes as mulheres mais pobres, as mulheres de comunidades, de periferia, onde as casas são mais próximas, elas denunciam mais, os vizinhos chamam a polícia, isso vem logo à tona. Enquanto mulheres de classe média alta, ou alta, elas tendem a não denunciar logo essa violência, em razão de muitos outros condicionantes sociais. 

As mulheres sentem muito medo, sentem muita vergonha, se sentem culpadas e não querem se expor. Então é como elas tivessem uma participação nesse tipo de violência. Toda violência contra mulher, toda violência de gênero é subnotificada, porque as mulheres não denunciam logo. Há violência que a gente não toma conhecimento nunca, porque as mulheres não procuram a polícia, a justiça, não pedem medida protetiva, resolvem de outra forma. Muitas vezes resolvem no consultório de um psicólogo, resolvem num divórcio, com advogado, e elas não procuram a polícia ou mesmo convivem com essa violência. Então esse número sempre vai ser subnotificado, tudo que a gente falar sobre número de violência a gente tem que lembrar sobre notificação. Mulheres que nunca procuram, nunca vão procurar a polícia, vão conviver com essa violência e, de alguma forma, resolver suas vidas sem nenhuma intervenção. 

E o perfil do homem que agride mulheres é de um homem comum. Ele é um homem de família.

Eu costumo dizer que os homens que agridem as mulheres são os homens que a gente cria em casa, é o pai, é o padrasto, é o filho, é o tio, é o irmão.

São os homens com quem a mulher tem uma afetividade, tem um laço, tem uma história. Isso muitas vezes se torna um fator importante que a mulher pondera no momento de denunciar. Muitas mulheres não denunciam porque ficam querendo saber o que vai acontecer com ele, e ela se sente culpada pelo que vai acontecer com ele. Então, assim, esse perfil é de um homem machista, ele cumpre todas as suas atividades normais. Esse homem não tem antecedentes criminais, ele é um homem em sua maioria, mais de 90%, que não tem registro na polícia por outro crime, então ele não tem o esteriótipo como muita gente pensa daquele cara agressivo, que já mostra como é que, que demonstra que é assim agressivo com todo mundo, é no trabalho, é com a vizinhança. Ao contrário, ele é uma pessoa de bem, quando você vem saber que, poxa vida, esse cara bate na mulher, esse cara é um cara de bem, ele trabalha, ele cria família, ele é um bom colega de trabalho, é um bom vizinho, é um cara legal e ele bate na mulher.

Porque o fator gerador, a causa da violência é a cultura machista.

Ele assimilou esses papéis de gênero, ele assimilou uma masculinidade que está associada na nossa cultura com a violência, com a virilidade. Então, enquanto mais se demonstra violência, poder, o cara macho, que tem essa força, mais ele é homem na sociedade. Quanto mais cedo ele beber, quanto mais rápido ele dirige um carro, quanto mais ele resolver situações da vida na violência, ele mostra que ele é homem. Então assim é uma cultura que cobra do homem certas atitudes violentas. E essa conduta violenta ela é chancelada, naturalizada nessa sociedade. Então o perfil do homem que bate em mulher é o perfil comum, é de um homem comum. Ele não tem nada de especial, não tem nada de estereótipo. Ele é um homem que foi socializado por uma cultura que diz não chore, seja homem, não deixe essa mulher mandar em você. Esses comandos a vida inteira fazem com que ele um dia, ou sempre na sua vida, internalize um hábito de resolver as situações da vida com a violência.

Qual é o papel do Estado no combate à violência contra a mulher? E diante desse papel, o que de fato tem sido feito? 

O papel do Estado é muito importante. Quando eu falo Estado eu estou falando de União, Estado e também município, porque essa obrigação é concorrente na Lei Maria da Penha. É importante dizer que essa lei, a Lei Maria da Penha, é uma lei que veio como um divisor de águas. Ela veio definir que a violência contra a mulher não é mais um problema só da mulher, não é um problema particular, não é briga de marido e mulher que ninguém põe a colher, mas é um problema público, é um problema que interessa ao estado em combater, porque diante de tanta violência, diante de um quadro que já se instalou evidente, que as mulheres sofrem violência, um número exorbitante de violência tendendo ao crescimento, se instala uma situação de risco concreto para as mulheres e o Estado tem um dever de devida diligência.

O que a gente chama de devida diligência é o papel de sair na frente, é o papel de pensar as políticas públicas de prevenção, é o papel de instalar os órgãos, os equipamentos de apoio, de atendimento à mulher, para que essa mulher realmente tenha onde buscar essa ajuda, esse apoio, e esse atendimento seja realmente concreto, seja efetivo para a vida das mulheres. Então o Estado tem esse papel, tem que cumprir esse papel de equipar os órgãos, de trazer uma segurança maior para as mulheres. Dar a garantia dela buscar ser atendida, dela realmente ter uma prevenção, que os filhos não vão perpetuar aquela violência. Buscar a prevenção nas escolas, prevenção em outros equipamentos também.

É um papel importantíssimo o dos municípios, Estados e União, de equiparem seus órgãos, de colocarem disponíveis esses equipamentos, para que as mulheres tenham uma política pública específica.

Todos os estados tem que ter o planejamento. Estado, União e municípios têm que ter o seu planejamento. Não é aconteceu a violência e agora eu vou tratar, como se fosse uma doença, mas sair na frente, ter um planejamento, que é um plano. Qual o plano? Qual a estratégia que vamos usar? Tem que articular todos os órgãos, essa articulação tem que ser entre União, municípios e estados nessa prevenção. 

Quais foram os maiores avanços do Estado do Rio Grande do Norte no que diz respeito à prevenção e punição nos casos de violência contra a mulher?

Houve avanços, sim, no Rio Grande do Norte em diversas áreas para o atendimento à mulher. O Estado criou três juizados de violência doméstica e familiar só em Natal, criou um em Parnamirim e outro em Mossoró. Então são juízos específicos para atender caso de violência doméstica e familiar contra a mulher. São três promotorias também específicas aqui Natal, uma em Parnamirim e uma em Mossoró. E no Estado inteiro óbvio que todas as comarcas, todos os juízes, todos os promotores recebem os casos de violência, e recebem com prioridade. A Lei Maria da Penha manda dar prioridade aos casos de violência doméstica e familiar. É importante dizer também que houve a criação pelo governo do Estado, o ano passado, da delegacia 24 horas.

A delegacia 24 horas que funciona na zona norte é um importante avanço, talvez um dos maiores avanços que a gente tenha tido nos últimos anos.

Porque era um anseio de toda a população, de todas as mulheres para resolver esses casos de violência, é uma porta aberta. A Patrulha Maria da Penha foi instalada no município de Natal e no Estado, também, pela polícia militar. Foi criado o dispositivo do botão do pânico, há programas de ressocialização do homem autor de violência, casa abrigo, centro de referência em atendimento à mulher. Então houve, sim, alguns avanços em relação às mulheres em situação de violência, equipamentos foram melhor instalados e ficaram realmente disponíveis para essas mulheres.

O governo Fátima instalou há um ano a primeira delegacia 24 horas da mulher no RN. Foi uma medida meramente simbólico ou resultou em alguma ação prática de combate à violência contra a mulher ? 

Eu quero enfatizar o que disse no dia que a delegacia foi instalada, no dia 8 de março do ano passado, pela governadora Fátima Bezerra. Esse foi um atendimento a um anseio de muitos anos. Mesmo antes de acontecer, de ter a Lei Maria da Penha, as mulheres desse estado lutavam por uma delegacia 24 horas. O que significa a delegacia 24 horas? É uma porta aberta. A delegacia da mulher foi a primeira política pública de enfrentamento à violência contra mulheres que aconteceu no país, isso no ano de 1985 no estado de São Paulo. Nesses 15 anos não tínhamos instalado uma delegacia da mulher aqui nesse estado.

Então uma delegacia da mulher é representativa, mas também é uma ação concreta.

Lá, essa mulher é acolhida da maneira como a Lei Maria da Penha diz que deve ser, um acolhimento onde ela é atendida por mulheres, ela tem um encaminhamento à medida protetiva, ela pode ir para o centro de referência, ela pode ir de lá para promotoria, de lá pode ir para o Juizado, de lá pode ir para casa abrigo. Então é uma porta aberta para as mulheres, eu considero a delegacia da mulher e a delegacia 24 horas foi uma ação concreta no enfrentamento à violência contra mulher.

Atualmente, dos 167 municípios do Rio Grande do Norte, apenas quatro possuem delegacias especializadas da Mulher: Natal, Mossoró, Parnamirim e Caicó. Esses números representam a ausência do Estado no apoio às mulheres? Qual seria um número satisfatório para uma cobertura eficiente? Uma delegacia é sinônimo de proteção à mulher ou é possível criar outras alternativas para inibir esses atos?

A delegacia da mulher se constitui, como eu dizia, na primeira política pública de proteção à mulher. Foi simbólico o SOS mulheres, uma ONG feminista São Paulo levantou a bandeira da delegacia da mulher e essa delegacia da mulher foi implantada e se constituiu na primeira política pública de atendimento à mulher. Ela é simbólica mas ela também tem um valor concreto.  A porta aberta levou a mulher a procurar a delegacia. Quando acontece uma violência contra mulher é fato público que as pessoas vão para a delegacia da mulher. Então se constitui numa política que as pessoas assimilaram como de proteção e é realmente, se constitui uma política de proteção à mulher. O fato de se ter delegacia da mulher no município significa proteção para mulher. Há mais de 15 anos o Estado não instalava uma delegacia da mulher, há uma deficiência em relação ao número de delegados, ao número de agentes, e há mais de 15 anos não se instalava.

Vai haver concurso esse ano para polícia civil e há promessa do governo do Estado em instalar novas delegacias da mulher, com esse atendimento específico e especializado no atendimento à mulher.

A vereadora Júlia Arruda (PCdoB) aprovou após muita luta a lei Patrulha Maria da Penha, que virou projeto no município. A deputada Isolda Dantas (PT) criou o projeto Maria da Penha nas Escolas. Até que ponto o parlamento, ocupado excessivamente por homens brancos conservadores, tem ajudado nessa luta? 

Representatividade importa sim. O Brasil caiu 11 pontos no ranking mundial de desigualdade em razão da pouca representatividade de mulheres no Parlamento. As mulheres são pouco representadas, nós temos pouco mais de 15% de mulheres no parlamento no Brasil - e esse número já cresceu, era 10% e cresceu para 15% - então, ainda é muito pífia a representação.

E a representatividade importa, não só em igualdade mas também nas políticas específicas de gênero que são capitaneadas pelas parlamentares mulheres.

As mulheres têm pensado mais, obviamente, em enfrentar a violência contra mulher. Esse projeto da vereadora Júlia Arruda, o Patrulha Maria da Penha, é um projeto muito importante para o município de Natal. A guarda municipal foi completamente capacitada para atender casos de violência contra mulher. A guarda municipal está tem todos os lugares aqui e tem um convênio com Ciosp, o 190, para atender casos de urgência e, dentro desses casos, uma urgência muito recorrente é a violência contra mulher. As pessoas chamam, ligam, e a guarda municipal vai. A guarda municipal foi treinada completamente para lidar com essa violência de de gênero contra a mulher. Não só os guardas e as guardas municipais que fazem parte da Patrulha Maria da Penha, mas através de iniciativa da então secretária de segurança do município, Sheila Freitas, foi treinada a guarda municipal toda. Isso foi um ponto muito positivo nesse enfrentamento à violência, e a vereadora Júlia foi realmente uma combatente obstinada em relação a Patrulha Maria da Penha. Ela conseguiu a aprovação do projeto na Câmara, mas houve um veto do então prefeito e, posteriormente, houve a derrubada do veto e o município entrou com uma ação de inconstitucionalidade dessa lei. Então foi realmente uma luta, ela conseguiu na justiça, o Tribunal de Justiça reconheceu que era constitucional a Lei, e o prefeito, juntamente com a secretária de segurança, resolveram instalar a Patrulha Maria da Penha que está em pleno funcionamento. 

Em relação ao projeto da deputada Isolda Dantas,  Maria da Penha vai às escolas, é importante também ressaltar que investir na educação faz parte da prevenção primária. É de fundamental importância que o conhecimento, a reflexão e a educação em relação ao gênero chegue antes que a violência aconteça. Muitas crianças e adolescentes estão vendo a violência, presenciando a violência nos seus lares. O Instituto Maria da Penha fez uma pesquisa juntamente com a Universidade Federal do Ceará e divulgou que 87% das violências que acontecem em casa, no Nordeste, são presenciadas por crianças e adolescentes. Um número muito alto. A criança vai escutar na escola alguma coisa que ela sabe, porque ela vê todos os dias a mãe apanhando, sendo humilhada, sendo vilipendiada, sendo retirado seu direito, sendo podada, constrangida, e a criança vê e vai entender o que é aquele tipo de violência para que isso não se repita, para que ela possa ser também mais uma fonte de apoio para essa mãe, para essa mulher sair da violência.

Como a tecnologia pode ser usada no combate à violência contra a mulher? Há aplicativos criados por mulheres em transporte urbano que rastreia as mulheres durante a viagem. Você conhece outras iniciativas no Brasil ou no exterior? Como usar a tecnologia a favor das mulheres e contra o machismo? 

A tecnologia pode e deve ser usada no combate à violência contra mulheres. Há vários dispositivos, há um botão do pânico, a tornozeleira e alguns aplicativos. Tem aplicativos que você pode cadastrar cinco números, que podem ser números de emergência, que você aperta no botão qualquer ou chacoalha o celular e ele já aciona esse números de emergência, o número da mãe, número de uma amiga, número da polícia, e eles servem também para esse apoio à mulher. Há dispositivos que mapeiam os lugares em que as mulheres sofrem mais assédio. A mulher entra nesse aplicativo e ela pode evitar esses lugares.

Obviamente que a gente vai ter que enfatizar que essa é uma política que ela não combate diretamente o machismo, ela somente protege as mulheres.

Porque colocar nas mãos das mulheres a sua própria proteção me parece que não é o mais adequado. A gente tem que combater o machismo que é estrutural. Não é evitando lugares, não é evitando roupa, não é colocando o botão do pânico na mão da mulher, não é uma política que a gente chama de invertida da casa abrigo, onde a mulher que fica presa, que se resolve o problema da violência. Isso são políticas necessárias, mas elas não enfrentam o machismo. Elas não estão aí para combater, mas para proteger as mulheres num dado momento, em uma situação. Acho muito válido, mas eu quero enfatizar que o principal não é contar com essas tecnologias para que a mulher fique na responsabilidade pela sua própria vida, tendo que acionar um botão. Por que você não apertou o botão? Ele tava perto, por que você não acionou o botão? Não é a mulher que tem responsabilidade pela vida dela, a gente tem que enfrentar esse machismo que mata, esse machismo que mata homens e mata mulheres, mas mata muito mais mulheres, porque as mulheres estão muito mais vulneráveis, porque o machismo coloca um homem numa condição de superioridade. Há uma crença de que ele realmente é superior às mulheres e podem resolver tudo na na força e na violência. 

Mas a gente pode pensar que o machismo também mata homens, porque os homens se arriscam mais em relação à velocidade no trânsito, à briga na rua, na violência urbana, ao uso de drogas, os homens tratam menos a saúde. Os homens ficam mais vulneráveis, morrem mais cedo. A expectativa de vida do homem é menor. Há várias situações que a gente pode atribuir ao machismo que faz com que esses homens ajam dessa forma.

Em São Paulo e no Rio de Janeiro há vagões no metrô só para mulheres. Você acha que com os números que temos uma saída a curto prazo é a segregação em ambientes coletivos, como o transporte público ? Como promotora de Justiça, como vê essa medida ? 

Eu discordo dessa política de segregar mulheres. Eu comparo isso aí com o uso de uma burca, que tem que botar uma burca nas mulheres para os homens não verem o corpo da mulher. O vagão exclusivo de mulheres significa colocar a mulher separada para que o homem não a veja, para que o homem não chegue perto. É realmente uma política de segregação.

Eu não tenho muita afinidade com essas políticas de segregação, de podar mulheres, de separar mulheres.

A minha afinidade realmente é com política pública de enfrentamento à violência de gênero de maneira estrutural, na cultura, na educação, na educação do homem, no tratamento - que não é um tratamento de saúde, nem psicológico, mas é pedagógico na relação dos homens com as mulheres -, em relação ao machismo. E estruturar os serviços da rede para um atendimento específico das mulheres, especializado como como a lei manda.

O MP tem um programa de ressocialização de agressores de mulheres. Qual é o índice de reincidência? Como tem sido os resultados e, para você, o que tem sido capaz de mudar a mentalidade dos homens para que voltem melhores e conscientes do ato criminoso que praticaram?

O ministério público desde 2012 tem uma política específica, que é um grupo reflexivo de homens. É o que a gente chama de educação do homem. Homens que são envolvidos em violência doméstica e familiar contra a mulher, que responde a processo, são chamados a participar de um grupo de reflexão, formado por até 15 homens. A gente tem sessões a cada duas horas, uma vez por semana. Em 10 semanas são discutidos temas como o machismo, como papéis de gênero, gestão de conflito, controle da raiva e agressividade, direitos humanos das mulheres, e uma série de outras questões, como saúde do homem, comportamento sexual de risco, que faz com que esses homens reflitam sobre sua própria masculinidade, sobre esse lugar, sobre as associações entre masculinidade e violência. Para que refletindo eles possam tomar uma postura diferente, uma conduta diferente. A gente sabe que uma conduta repetida ela se torna um hábito. 

Nós temos um índice de reincidência zero desde 2012 e eu quero dizer que no país inteiro o índice de reincidência dos grupos reflexivos é de 2%.

É muito eficaz, nós estamos enfrentando uma reincidência que no sistema penitenciário comum é de 50%, segundo dados do departamento penitenciário nacional. Então você compara 50% com 2% parece que é uma coisa muito importante. 

Nesse mês de abril houve uma importante mudança na lei Maria da Penha, que foi reconhecer que os grupos reflexivos e o atendimento psicossocial do homem ele faz parte da proteção da mulher. Eu tive o prazer de estar presente em 2015 numa audiência pública no Senado Federal, na Comissão de Direitos Humanos, a convite do Senador Paulo Paim. Nessa audiência pública apresentamos o projeto aqui do Rio Grande do Norte e a então senadora Regina Souza elaborou um projeto para que isso se tornasse medida protetiva e o nosso programa aqui no Rio Grande do Norte, no MP do Rio Grande do Norte, foi um dos fundamentos para que situações exitosas, experiências exitosas pudessem justificar a aprovação desse projeto.

A gente ficou muito feliz porque reconhecer que a educação do homem faz parte da proteção da mulher, e não só dá pena, é muito importante. Porque realmente a gente tem que tratar individualmente, esse homem tem que ser responsabilizado, mas ele faz parte de uma estrutura. Esse machismo ele corta essa estrutura inteira. Existe machismo no judiciário, no Ministério Público, na OAB, nos órgãos de Segurança Pública, existe no governo, existe no município, existe na união, existe na igreja, existe na família. Ele está na sociedade toda, por isso que a gente diz que é estrutural, ele faz parte da própria estrutura dos órgãos do Estado. A educação, em todas as suas frentes, se constitui em um avanço importante e num ponto, talvez o mais importante, para o enfrentamento da violência de gênero contra a mulher.

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