Escândalo no esporte brasileiro
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Escândalo no esporte brasileiro

2 de março de 2018
Escândalo no esporte brasileiro

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O preconceito, a discriminação por gênero especificamente, é um dos maiores e mais denunciados malefícios da sociedade contemporânea. A história de luta por direitos e inclusão da população trans brasileira é antiga e finalmente começa a conseguir resultados expressivos. A fundação do IBTE (Instituto Brasileiro de Trans Educadores) foi uma dessas conquistas, que reuniu pela primeira vez a imensa maioria das pessoas trans no Brasil (tanto homens, quanto mulheres) ligados à Educação, seja como docentes ou discentes num espaço democrático de discussão que tem, pela primeira vez, buscado um esforço científico de sintetização no que diz respeito à inclusão de pessoas trans na educação. Falamos dessa área justamente pelo que ela representa em termos estratégicos na perspectiva da formação da cidadania, especialmente porque vivemos no país que mais mata travestis e transexuais no mundo, e que condena mais de 90% de nossa população a viver da prostituição, mesmo quando instruídas e devidamente profissionalizadas nas mais diversas carreiras. Viver do sexo, do corpo, parece ser um destino da qual a população trans brasileira está bem longe de se livrar. 

Nos últimos tempos, essas lutas às quais me referi acima começaram a produzir o fenômeno (ainda muito raro) de mulheres transexuais que, desafiando todo tipo de preconceito (até afirmativas como “ela respira diferente”), tem conseguido um lugar, ainda muito questionado e ameaçado, no esporte de alto rendimento, não só do Brasil como do mundo. Dentre os pouquíssimos casos, existe um acontecendo num dos esportes mais populares do país, responsável por algumas das maiores conquistas do esporte brasileiro e que tem escandalizado o país: o caso Tifanny. 

Para quem não está acompanhando, lá vai o contexto. Tifanny é uma mulher trans que está “causando” pela sua participação bem sucedida na Super Liga brasileira de vôlei feminino. Como isso foi possível? Após passar por cirurgias e rigoroso controle de suas taxas de testosterona, Tifanny foi considerada pela mais alta autoridade do esporte mundial, o Comitê Olímpico Internacional (COI) apta a concorrer, em igualdades de condição, sem prejuízo para a competitividade do voleibol feminino.  

Após sua estreia no vôlei feminino na Itália com elogiadas atuações, Tifanny transferiu-se para o vôlei de Bauru, onde também tem se destacado pela consistência de seu jogo. Só que entre o nível de civilidade e aceitação vivido na Europa e a atual realidade de chacota, perseguição e intimidação que vem sofrendo o ser humano Tifanny aqui no Brasil, encontra-se justamente o hiato entre sociedades, que apesar de ancoradas no patriarcalismo cristão, diferenciam-se pelo nível de maturidade pelas quais são tratadas as relações de gênero, especialmente no que diz respeito aos direitos das ditas minorias como os LGBTQIS. 

A interdição dos debates sobre gênero e sexualidade nas escolas tem sido uma realidade objetiva do cotidiano dos professores (são vários os relatos de professores demitidos por insistir em realizar tal debate, especialmente na rede privada) e em longo prazo tenderá a agravar os já altos índices de transfobia e misoginia na sociedade brasileira. 

Os transfóbicos de plantão, sujando nomes bonitos com história no esporte brasileiro como Ana Paula, Sheilla e Tandara, não aceitam e se utilizam de argumentação tanto da biologia (já totalmente refutada) da origem no gênero masculino quanto se valem de uma esdrúxula retórica terrorista segundo a qual a presença de Tifanny seria só um prelúdio de uma avalanche de “gays” que iriam “virar mulher” para poder competir no esporte feminino de alto rendimento em vantagem física de modo que, em longo prazo, só haveriam atletas trans em substituição às mulheres cis no esporte feminino, no vôlei no caso em questão. 

A absurdidade de tal proposição é tamanha que foi facilmente desconstruída por técnicos e intelectuais do esporte, tais como Régis Rezende, Professor de Educação Física e Fisiologista  com Pós Graduação especializada em Voleibol, que afirma que qualquer tentativa de enquadrar Tifanny como não apta a jogar em equidade de condições no vôlei feminino é puro preconceito, uma vez que seus índices de testosterona são hoje tão baixos a ponto de serem mais baixos do que os existentes naturalmente em mulheres. E para os que tentam argumentar que o fato de a transição de Tifanny ter se dado de maneira relativamente tardia (dos 29 aos 31 anos) e por isso ela teria usufruído da testosterona por muito tempo, produzindo uma vantagem muscular ou fisiológica “nata”, o professor chama atenção para o fato de que Tifanny talvez tenha até certa desvantagem em relação à perda de massa óssea e muscular experienciada na transição, a ponto de ter menos tempo de reação, prejudicando sensivelmente seu jogo de fundo de quadra, que é mais importante no feminino que no masculino, assim como necessitar de maior tempo de recuperação muscular. 

Ressalta também Rezende que as obtusas sugestões de criação de uma liga “paralela”, só para atletas transexuais, seriam uma medida que longe do discurso equitativo que em tese a ancora, produziria, sancionaria na verdade, o preconceito e exclusão, visto que apenas 1,1% da população mundial, estima-se, sejam de mulheres trans. Destas, poucas são atletas de qualquer esporte e muito menos ainda do esporte de alto rendimento. O voleibol, por exemplo, dispõe  de apenas quatro atletas mulheres trans em competições profissionais no mundo inteiro. Como poderíamos, portanto, criar um “liga trans” se somando todas as atletas mulheres trans jogando voleibol profissional no mundo não se formaria um único time ? No voleibol, como sabemos, são seis atletas, além do líbero (sete na prática), quando temos apenas 4 mulheres trans atletas de voleibol no mundo. Então, é um verdadeiro delírio transfóbico acreditar que em alguns anos a posição das mulheres biológicas estará completamente ameaçada no esporte. Somente o preconceito, e mais nada, pode embasar esse tipo de posição, até porque a simples presença de homossexuais no esporte masculino não significa que irão todos transexualizar-se em busca da ilusória vantagem (grandemente perdida no processo transexualizador) para competir no feminino, até porque a transexualidade é uma condição ontológica de um indivíduo, não é uma opção a qual se recorre quando uma vida de hetero ou de gay “deu errado”. 

Tifanny não virou trans aos 29, ela era trans “desde sempre” provavelmente. O fato é que somente aos 29 anos sabe-se lá a custa de quanto sofrimento ela decidiu enfrentar o mundo machista do esporte e assumir-se como sentia-se. Provavelmente uma das razões da transformação tardia tenha sido justamente o medo de perder o mercado de trabalho de sua profissão, afinal, ela é uma atleta profissional. E tem direito de continuar a exercer sua profissão, seu sustento, independente de suas questões pessoais (agora resolvidas, acreditamos) de gênero.  

A consultora do COI para assuntos relativos à transexualidade no esporte, a norte-americana Johana Harper, vai mais longe e nos provoca com a ideia de que a desigual condição atlética de cada desportista não só faz parte da competição, como é seu principio balizador, uma vez que se todos os atletas de uma categoria tivessem rigorosamente todas as condições físicas, emocionais, técnicas e etc, em última instância não haveria competição, disputa, todos os jogos e provas terminariam empatados, uma vez que o princípio do esporte de competição é que atletas diferentes, com  idades, alturas, massas ósseas e habilidades técnicas distintas, porém niveladas, estejam em competição colocando seus talentos à prova do talento uns dos outros. 

No caso da Tifanny tem se dito que ela é muito alta pra o feminino (1,93), mas ao menos dez jogadoras da Super Liga têm 1,90 ou mais, incluindo as “torres  gêmeas “ da nossa seleção feminina: Fabiana (1,93) e Taíssa (1,96). Tem se argumentando que ela faz pontos demais, o que demonstra mais uma vez que a argumentação é absolutamente injusta e tendenciosa visto que a grande quantidade de pontos feita por Tifanny é diretamente proporcional à enorme quantidade de bolas que tem recebido, tendo seu desempenho estatístico oscilado cada vez mais para baixo à medida em que a competição avança, sendo hoje de meros 45% de efetividade no ataque contra quase 60% da líder em ataques da competição, a meio de rede Carol Gatazz, do Minas. 

Os números da ciência médica, da estatística, o bom senso e os direitos humanos estão a favor de Tifanny. Contra ela, só o preconceito, que agora mancha a linda história do voleibol brasileiro (já muito maculado pelo legado maldito de corrupção do Nuzmam). Existe um escândalo no esporte brasileiro sim, mas não é a presença da Tifanny na Super Liga, é o absurdo preconceito contra ela.  Acima de tudo, o grande escândalo do esporte brasileiro é também a corrupção de dirigentes que se apegam ao poder sem competência técnica ou idealismo ao esporte, mas meramente buscando enriquecimento ilícito pessoal. Estamos na torcida por você, Tifanny. Nós mulheres trans, eu mesma ex atleta de voleibol, poderíamos estar passando a mesma coisa que você, afinal nossa luta diária contra a transfobia tem na necessidade de inclusão no mercado de trabalho seu ponto mais delicado. 

No dia em que o STF legalizou a transição de gênero sem patologização (um primeiro e decisivo passo rumo a uma cidadania plena) seguimos na luta, seguimos em frente, seguimos com Tifanny, na torcida e na esperança de dias de mais inclusão e menos intolerância. 

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